Ó nobre visitante desta barca virtual
Naveguemos pelos mares livrescos
As páginas aguardam nossos passos
E com elas faremos nossa Odisseia
Versos infelizes deste leitor à parte, a Odisseia é uma das obras mais épicas e importantes já escritas. A epopeia de Homero oferece muitos caminhos para serem explorados: a história dita principal, os recursos narrativos, o formato em si – visto que a epopeia é uma marca de época, usada em obras que hoje olhamos como clássicas -, os conflitos humanos, o toque direto dos deuses gregos; esse mar é vasto e aguarda a nossa expedição.
A nossa, porque a viagem do protagonista nem pode ser chamada disso. Ulisses está longe de casa há anos por causa de uma guerra, e sua jornada rumo ao lar envolve mais do que suas condições físicas ou um exército bem preparado. A sorte dele é ter Palas Atena, deusa dos olhos esverdeados, o aconselhando a cada passo, interferindo diretamente no plano mortal da história e até discutindo com outros deuses em seu favor. Afinal, as divindades gregas brigavam feito gente, e era cada deus por si: Zeus amontoador das nuvens se impõe quando necessário; Hipérion, deus do sol, não tolera que reles humanos (mal orientados por seus protetores ou só fingindo ingenuidade?) o ofendam matando seu gado; Poseidon, sacudidor da terra, se mostra um dos entes mais agressivos e tem força o bastante para destruir um continente em um estalar de dedos.
A proteção divina guia o retorno de Ulisses, mas sem o levar pela mão. Uma passagem pela ilha dos Lotófagos, criaturas que esquecem da vida ao comer do fruto da Lótus; atravessar a passagem dos rochedos, guardada pela dupla violência de Cila e Caríbidis, cuja ferocidade se completa nas habilidades uma da outra; ou a luta em que Ulisses engana e cega um cíclope, e ainda esconde seu verdadeiro nome, se identificando como “ninguém” – nemo, na palavra latina, e o gigante terá de dizer que “ninguém me derrotou”. A jornada do protagonista é tão, tão árdua que incluí até uma visita a mansão de Hades, o inferno do mundo mitológico grego – mas Ulisses vai pra lá vivo, contrariando as normas e humores de alguns deuses e seguindo a orientação de outros.
Ler a Odisseia é uma aula não apenas de literatura clássica/grega ou de epopeia, mas talvez uma caminhada rumo à memória.
O lar parece menos longe quando se desembarca em Ítaca, onde fica a casa de Ulisses. Mas uma vez dentro de casa, a confusão só muda de plano. Sua esposa Penélope está a mercê de pretendentes canhestros, e para seu filho Telêmaco o pai tornou-se mera lenda. Após elaborar um plano tão arriscado quanto engenhoso, Ulisses pouco a pouco toma posse da casa que já foi sua e (re)conquista os seus entes, não sem antes ter de provar quem realmente é, dado que sua ausência apagou um pouco de sua presença, além de sua aparência ser bem distinta daquela de outra época. Mais do que depender de habilidades físicas ou palavras aladas, recorre a memória para trazer à superfície os detalhes íntimos que só ele conhece desta morada – tanto a física quanto a mental.
A história da Odisseia é até simplória, mas a maneira como é contada pode pregar algumas peças. Dentro de um trecho, acompanhamos um personagem contar de um detalhe ocorrido anos antes da época corrente no enredo, para voltarmos ao tempo principal versos depois. Os títulos dos personagens tem microhistórias em si, e alguns personagens recebem mais de um título, quando não um insulto ou uma qualidade atribuída por outro – Ulisses o astucioso, será que realmente é ou apenas seus colegas humanos que o veem assim? Além da coleção de detalhes repetidos nos Cantos dessa Odisseia, é fácil perder a conta de quantos personagens proferem palavras aladas, as constantes menções a rochedos, a importância das camas que parecem mais do que locais de repouso físico, e outros a espera dos seus olhos atentos. Parece muita informação para se lembrar, mas a nossa jornada e tranquila: ler a Odisseia é uma aula não apenas de literatura clássica/grega ou de epopeia, mas talvez uma caminhada rumo à memória.