A escritora sul-africana Futhi Ntshingila pode ainda ser uma desconhecida no Brasil, mas sua primeira obra publicada aqui, Sem Gentileza (Dublinense, 160 págs.), já é o suficiente para que jamais seja esquecida. Engajada na luta contra a violência em seu país, Ntshingila constrói uma narrativa dura sobre a epidemia de aids que assolou todo o continente e a batalha diária pela sobrevivência.
Zola é uma mulher soropositiva e moradora de uma favela. Sua filha, Mvelo, precisa lidar com a doença da mãe e a iminência da morte. Se Saramago uma vez contou sobre a impossibilidade de se morrer, Ntshingila narra a inevitável partida. O que existe de forte e intenso em Sem Gentileza é, justamente, a realidade que bate à porta das famílias sul-africanas, degringoladas pela miséria.
É impossível passar incólume à leitura. Ao mesmo tempo em que a autora precisa chocar, ela nada precisa fazer, a não ser narrar o cotidiano da maior parte da população. O estupro, um dos temas centrais, é o grande medo de Mvelo e de Zola, que tenta a todo custo protegê-la e fazer da filha uma estrela da música. A preocupação da mãe tem sentido. De acordo com a Time, todos os anos 55 mil casos de estupro são relatados na África do Sul.
É impossível passar incólume à leitura. Ao mesmo tempo em que a autora precisa chocar, ela nada precisa fazer, a não ser narrar o cotidiano da maior parte da população.
Entretanto, Sem Gentileza não é apenas uma declaração de guerra, é também um atestado de liberdade. Mvelo precisa despir-se de tudo, inclusive da igreja, para conseguir manter-se viva. Seu padrasto Sipho, também vítima da aids, foi seu único herói masculino, enquanto a mãe debilitada deu a ele todo o amor possível.
Escassez
Como Coetzee, Futhi Ntshingila tem uma prosa enxuta – revelando somente o necessário. A impressão é de que não há espaço para o supérfluo: é preciso contar história de vidas curtas com o mínimo, como se a escassez de possibilidades dos personagens se estendesse para o texto. Em Sem Gentileza, os espíritos ancestrais parecem mais vivos que os próprios vivos.
Mesmo sem saber, Zola e Mvelo exerciam o feminismo, que nada mais que a busca pelo básico – respeito e dignidade. Ntshingila levanta sim, e com orgulho, a bandeira do movimento feminista e, ao contrário do que mentes pequenas podem pensar, isso apenas valoriza a obra e a vida de mulheres que, como a autora e suas personagens, lutam todos os dias para ainda estar na terra.