Nos últimos anos, uma “guerra cultural” vem sendo travada (por meio da mídia, da academia e da opinião pública) entre aqueles que defendem ideias progressistas e os setores mais conservadores da sociedade. Nesse embate, a questão da representatividade costuma receber grande destaque, especialmente quando se fala de obras de arte e discussões acerca da falta de representação de minorias nos produtos culturais e midiáticos mais consumidos.
O último caso que ganhou destaque no mundo inteiro, inclusive repercutido no Brasil pelo próprio filho do presidente Eduardo Bolsonaro, foi a revelação feita pela DC Comics de que seu novo Super-Homem, Jon Kent, se descobriria bissexual na próxima edição da HQ.
Muitos que repercutiram a notícia sequer parecem familiarizados com o caso e erroneamente presumiram tratar-se do Super-Homem original. Essa foi uma manobra ousada, mas ao mesmo tempo bastante segura por parte da DC Comics: com essa jogada, apresentam um Super-Homem bissexual que, ao mesmo tempo, reforça a heterossexualidade canônica do “verdadeiro” Super-Homem, Clark Kent.
Representatividade importa?
A questão da representatividade na arte é, como todas as questões ligadas à arte o são, subjetiva. Isso não quer dizer que não deva ser discutida. Afinal de contas, uma mera observação da realidade é o suficiente para constatar que há (e houve ao longo da história recente) uma predominância de personagens e pontos de vista masculinos, heterossexuais e brancos.
Questionar esse paradigma é o objetivo de quem defende maior inclusão e representatividade nas obras de arte e produtos culturais. A arte mais inclusiva e diversa tem o potencial de oferecer um retrato mais fiel da nossa realidade, que é extremamente variada, polifônica e plural. Ainda, a representatividade permite questionar os sistemas vigentes que perpetuam a marginalização de grupos minoritários, como a população LGBT ou indígena, e colocar esses assuntos em discussão pública e amplamente difundida. Em outras palavras, representatividade importa, sim.
Porém, é preciso ter cuidado: não se pode tratar a representatividade artística e midiática como uma panaceia capaz de erradicar esses sistemas de poder e opressão. Uma quantidade maior de super-heróis negros nos blockbusters hollywoodianos, embora cumpra o papel de oferecer a essa parcela da população uma merecida representatividade, não é o passo definitivo rumo ao fim do racismo e pouco efeito tem na opressão efetiva que o racismo sistêmico perpetua.
Capitalismo arco-íris
Não se pode tratar a representatividade artística e midiática como uma panaceia capaz de erradicar esses sistemas de poder e opressão.
Nos últimos anos, mesmo as grandes corporações parecem ter enxergado a importância da inclusão e apostam no sucesso de filmes como Pantera Negra e Shang-Chi. Por mais que a maior diversidade atualmente vista mesmo no entretenimento mais mainstream como as HQs de super-heróis seja positiva, pois traz uma pluralidade maior de pontos de vista, é preciso ter cuidado com a forma pela qual essas grandes corporações apoiam – ou demonstram apoiar – as causas progressistas.
O chamado capitalismo arco-íris (adoção das pautas LGBT para cooptar esse público como consumidores) é apenas uma das formas que as grandes empresas utilizam para deturpar as causas progressistas em prol do próprio lucro. Esse simples fato é o suficiente para contestar a ideia do “Quem lacra não lucra”; se essas corporações não obtivessem lucro ao aparentar defender causas sociais, não existiria qualquer motivo para que continuassem a fazê-lo.
O capitalismo arco-íris está em total evidência nesse último escândalo da guerra cultural. Estrategicamente, a DC Comics anunciou a novidade em preparação para o National Coming Out Day (Dia de Sair do Armário), celebrado no dia 11 de outubro, uma manobra que evidentemente teve o objetivo de maximizar a repercussão e a visibilidade do caso e assim obter maior lucro das vendas.
De certa forma, é preferível que essas empresas, mesmo motivadas pelo lucro, promovam causas sociais de viés progressista ao invés de defender o reacionarismo e o moralismo conservador. Por outro lado, é preciso estarmos atentos enquanto consumidores com a genuinidade desses atos.
Porque, afinal de contas, se o lucro é quem manda nas inclinações políticas dessas grandes empresas, é certo que nenhuma delas hesitaria em promover ideias retrógradas se essas se tornassem mais lucrativas do que o progressismo (e todos sabemos que, nos tempos atuais, isso é uma assustadora possibilidade).