O Brasil viu o que podemos chamar de Era de Ouro do Conto entre o início da década de 1960 e meados de 1980, numa sincronia absurda com o Golpe Militar e a redemocratização mambembe que perdura até hoje. Nesse período, surgiram nomes como Rubem Fonseca (1925 – 2020), Sérgio Sant’Anna (1941 – 2020), Lygia Fagundes Telles, Moacyr Scliar (1937 – 2011), que trouxeram em seus textos, além de um tom predominantemente urbano – rompendo de vez com o regionalismo de Guimarães Rosa (1908 – 1967) e José Lins do Rego (1901 – 1957), retratos de um país de múltiplas faces, mas que se encontravam em uma encruzilhada de miséria, ameaça política – a eterna falácia da paranoia comunista – e dilemas pessoais.
A grande ruptura se dá, justamente, em “O Cobrador”, conto de Fonseca que abriu as portas para uma descrição minuciosa da barbárie das grandes metrópoles, elegendo os merdunhos de João Antônio (1937 – 1996) como heróis de uma sociedade pequeno-burguesa que insiste, a todo custo, a invisibilizá-los através do silêncio. Somente a partir desse momento seria possível pensar na construção de um cenário urbano marginal e dicotômico, como em Cidade de Deus, de Paulo Lins, e O Invasor, de Marçal Aquino – e acabou por se tornar um gênero em si, tomado como tão brasileiro quanto o samba. (Essa tendência explica o porquê o Brasil nunca lidou muito bem a produção tupiniquim do realista fantástico. Nem mesmo José J. Veiga (1915 – 1999) ou Murilo Rubião (1916 – 1991) têm plenamente reconhecida a sua obra. Isso, contudo, já é outro papo.)
Porém se, depois de quase seis décadas de uma literatura escarrada há quem decrete o esgotamento da prosa realista – a morte do romance, inclusive –, existe também uma necessidade de ressignificação do real que passa, antes de tudo, pela reinterpretação dos mundos, suas ideias e seus personagens. Esse parece ser, sem dúvida, o projeto literário de Michel Laub ou Cristovão Tezza, mas é a força-motriz de Velhos, a engenhosidade que corpo aos contos de Alê Motta.
O livro, cujo eixo de todos os relatos é a senilidade, explora os limites físicos e morais da vida, como se envelhecer desafiasse também uma espécie de ética interna do ser humano, escamoteada por uma certa tolerância e deferência. Nessas tantas visitas cruéis do tempo, a escritora compõe um trabalho de fundo brutalista – como certa feita Bosi definiu o autor de Feliz ano novo – e que tenta se reconciliar com a lucidez da velhice e os muitos apocalipses particulares.
O conto que abre Velhos, “Herança”, discute não apenas as questões familiares mais íntimas, mas coloca em debate uma inocência hedionda, que talvez tenha buscado seu fôlego numa influência ocasional de Assassinato no Expresso do Oriente, de Agatha Christie (1890 – 1976), ou A Morte de Ivan Ilitch, a novela em que Tolstói (1828 – 1910) melhor sintetiza o drama assíncrono burguês. Se essa simbiose, entre o policial e a denúncia social, soa estranha ou desproporcional, Motta traduz com inteligência o sentimento que envolve esse pequeno relato sobre um homem “brilhante na maldade”:
“Quem olha de longe vê um velho fofo. Quem convive de perto está louco para ir ao seu funeral.”
Em alguma medida, Velhos escapa à tentação formulaica da literatura urgente que tomou de assalto as estantes das livrarias, mas não deixa de trazer à tona temas sensíveis e sociais. No breve e afiado “Desculpas”, Alê Motta reconstrói a realidade a partir da desconstrução do sujeito em sua humanidade, uma estratégia que aplica também em “Valores”, ambos imensamente devedores do legado de Rubem Fonseca.
Na mesma toada, “Emoções” – um dos dois contos que remete a canções de Roberto Carlos – investiga as raízes do sufrágio universal, criado por Getúlio Vargas (1882 – 1954) em 1932 e incorporado à Constituição de 1934, como facultativo – sendo equiparado ao voto masculino, ironicamente, apenas um ano após os militares chegarem ao poder. Na saga de fazer valer seu direito, a narradora-protagonista precisa driblar a indolência de quem enxerga no voto como uma pura obrigação burocrática:
“Eu quero votar. (…) Lembro quando eu queria e não podia. Só os homens podiam.”
Ainda que a autora não ofereça ao leitor pistas temporais da ação e da personagem – mas considerando que o ambiente cronológico de Velhos seja o “agora” – parecer haver certo lapso em “Emoções”, que poderia ser justificado, obviamente, ao atribuirmos à protagonista uma idade bastante avançada. Entretanto, isso fica em suspenso.
Alê Motta busca a síntese como experiência e posicionamento.
Subjetividade
Em um momento em que a prosa de ficção parece ter perdido a forma, chegando à exposição rudimentar dos temas mais quentes para reverberar nas redes sociais e nos grupos de discussão – beirando o oportunismo – , Velhos representa um certo resgate da tradição. Nesse jogo de nuances, em que o leitor é colocado contra a parede, Motta cria um diálogo entre realidade e real, abstrato e abstração, não como sinônimos falsos em um juízo raso, mas como elementos que se completam.
Os contos exalam uma subjetividade inteligente e instigante, numa estrutura – e estratégia – semelhante à Teoria do Iceberg de Hemingway (1899 – 1961), que tem como marca a concisão geometricamente elaborada. Talvez, mais que o autor d’O velho e o mar, Motta tenha em Lydia Davis a sua conexão mais profunda com a brevidade. Seus relatos são substância cíclicas como os textos de Topos de perturbação e Nem vem.
“Passado”, por exemplo, uma das melhores historietas de Velhos, desloca tempo e espaço em um verdadeiro acerto de contas geracional e familiar, que guarda, entre segredos, uma meditação sobre a culpa e a resiliência – como fez Davis em “Um homem do passado dela” e “História circular”. Fica claro que, para as duas autoras, linguagem também é personagem. Portanto, nessa ode sobre o silêncio, a escritora desenvolve um páthos complexo, em que todos – e aí entra também o leitor – são cúmplices de um mesmo crime. Se há no final do conto uma revelação, não é como mera artimanha estilística, mas por se tratar de uma casualidade realista e dolorosa.
Para Itamar Vieira Júnior, que assina a orelha de Velhos, Alê Motta busca a síntese como experiência e posicionamento, algo que permeou a obra de Dalton Trevisan e que ganhou ecos mais recentemente na produção do catarinense Carlos Henrique Schroeder e do curitibano Márcio Renato dos Santos.
Os homens e as mulheres de Alê Motta parecem saborear com alguma sabedoria as suas infelicidades. Conscientes de não chegarão à Terra Prometida, que no modus operandi ocidental se configura em inúmeras promessas falhas, vão se acostumando a uma vida em que tudo lhes falta: da dignidade ao teto. Não existe rastro de ressentimento, ao contrário, como a velha de “Trotes”, a família vem antes mesmo do amor próprio – como se fosse um consolo por ter chegado tão longe. As projeções da juventude – riqueza, felicidade, sucesso, beleza, etc. – escorrem como areia entre os dedos. Inevitável para qualquer sujeito médio.
Ao escolher esse caminho, explorando uma estrutura bastante formal em sua narrativa, a escritora adere a certa segurança, mas não deixa de encontrar a sua voz particular no texto e que, na crueza e exatidão, aplica sempre um choque de realidade. É como se, através de uma janela suja, fosse possível espiar as vidas mais comuns.
Para o bem e para o mal, os velhos de Alê Motta são gente à deriva, à espera de seus Godots, emulando uma salvação que nunca virá: estão anestesiados ora pela ignorância, ora pela certeza de tudo saber, o que, na prática, é a mesma coisa.
VELHOS | Alê Motta
Editora: Reformatório;
Tamanho: 136 págs.;
Lançamento: Outubro, 2020.