A segunda parte do texto que trata da antologia Quatro poetas poloneses lidará com outros dois nomes de grande peso no cenário da poesia polonesa: Wisława Szymborska (1923-2012) e Zbigniew Herbert (1924-1998) – leia a primeira parte deste texto aqui.
Segundo creio, Szymborska é a poeta polonesa mais traduzida para português do Brasil (recentemente, ganhou uma primorosa antologia de limeriques, intitulada Riminhas para crianças grandes, publicada pela Âyiné, com traduções de Eneida Favre e Piotr Kilanowski).
Szymborska possuía um grande senso de humor (um humor peculiar, é verdade), mas este se faz sentir apenas levemente em Quatro poetas poloneses. Podemos senti-lo, por exemplo, no poema “Museu”. A poeta nos apresenta a impermanência da vida humana partindo da perspectiva das coisas: nossas coisas tem vida mais longa que nós. Escreve a poeta:
“Por falta de eternidade, juntaram
Dez mil coisas velhas.
Um guarda musgoso cochila docemente
Com bigodes caindo sobre a vitrine.
Metais, barro, pluma de ave
Triunfam silenciosamente no tempo.
Apenas um alfinete da galhofeira do Egito ri zombeteiro.
[…]
Quanto a mim, vivo, acreditem por favor.
Minha corrida com o vestido continua.
E que resistência tem ele!
E como ele gostaria de sobreviver!”
A resistência, portanto, também é uma questão de gosto. De estética. Por isso, ‘não se deve menosprezar a ciência do belo’.
É um procedimento típico de Szymborska atribuir vontade e consciência às coisas (também às plantas, aos insetos…) e, especialmente, olhar a existência e a história humanas com esses improváveis pontos de vista. Dessa visão, surge um humor que zomba da seriedade com que tratamos a nós mesmos, primatas bípedes e desprovidos de pelos.
Contudo, nos sete poemas que figuram na antologia que ora trago às senhoras e senhores, o tom é distinto. No poema “Vietnam”, por exemplo, ouvimos a voz de uma mãe, vitimada pela guerra, que sabe apenas quem são seus filhos. Em “Número Pi”, temos loas ao admirável 3,1415926535897932384626433… que vai aparecendo ao longo do poema, em sua infinita nobreza numérica:
“O cortejo de algarismos que compõe o número Pi
não para à margem da página,
consegue estender-se pela mesa, pelo ar
pelo muro, pela folha, pelo ninho do pássaro, pelas nuvens, diretamente até o céu,
por todo o seu inchaço e o insondável celeste.”
Curiosamente, a toda esta infinitude damos o nome de “Pi”, ou, terror nas escolas, π.
Em Quatro poetas poloneses, também aparece um tema muito desenvolvido na obra de Szymborska: o destino e o acaso na vida humana. No poema “Amor à primeira vista”, o eu-lírico se põe a examinar se, de fato, o amor ali narrado é, de fato, à primeira vista. Conclui que não e que, inclusive:
“Ficariam surpreendidos de saber
que já faz tempo
o acaso brincava com eles.
Não preparado ainda
a transformar-se para eles num destino,
aproximava-os e os afastava,
cortava-lhes o caminho
e, abafando a gargalhada,
saltava para o lado.”
O destino ganha a roupagem de acaso e, da incompreensível razão por trás das coisas, passa a ser, na melhor das hipóteses, uma criança brincalhona (ou, na pior, um palhaço brincando com nossas vidas). Também aí está o peculiar humor de Szymborska, que funciona num esforço danado para pegar palavras pesadas/dramáticas/cheias de páthos e “fazê-las parecer leves”.
As brincadeiras de Szymborska e seu jeito aparentemente simples de escrever vem conquistando o público brasileiro. Eis aí uma boa notícia!
E agora Zbigniew Herbert, o não tão bem-humorado poeta que já apareceu tantas vezes por aqui.
No Herbert de Quatro poetas poloneses, já se pode observar bem muitos temas que marcarão a escrita do poeta: sua obsessão pelo mundo clássico, a busca de uma vida digna (neste barco que está sempre afundando), os ecos da guerra e a história da Polônia. Neste sentido, Herbert é profundamente polonês.
Um poema seu, “A mensagem do Senhor Cogito”, frequentemente é citado por políticos poloneses e muito raramente dentro de um contexto que faça sentido. Naturalmente, não temos este problema no Brasil.
Neste poema – embora sejam perfeitamente possíveis leituras políticas –, parece-me mais importante a busca de uma ética que permita viver com dignidade. E é sempre engraçado que o Cogito nos aconselhe que ser corajoso é o que importa, no final das contas.
Outro poema que me parece muito significativo é “O poder do gosto”. O eu-lírico discute a importância da estética e, num momento de grande sinceridade, abrindo o poema, diz:
“Isto de modo algum exigia um grande caráter
a nossa recusa o nosso desacordo e obstinação
tivemos um pouco de coragem indispensável
mas no fundo foi apenas uma questão de gosto
Sim de gosto
em que se encontram as fibras da alma e as cartilagens da consciência”
A resistência, portanto, também é uma questão de gosto. De estética. Por isso, “não se deve menosprezar a ciência do belo”.
Para encerrar, as leitoras e os leitores de Quatro poetas poloneses poderão se deparar com um dos grandes mistérios da literatura polonesa: por onde andam as vírgulas de Herbert?