A crônica é o gênero literário tipicamente brasileiro: a sua cordialidade é, na verdade, um pretexto para o escrutínio minucioso das cidades, das pessoas e dos costumes. João do Rio, Rubem Braga, Nelson Rodrigues e Clarice Lispector não me deixam mentir. Se o cronista outrora foi um retratista circunspecto ao seu espaço físico, hoje é um cidadão do mundo, um agente do não lugar. A crônicas que dão corpo a Bula para uma vida inadequada, estreia literária do jornalista Yuri Al’Hanati, também não me deixam mentir.
Para além da ideia do flanêur e do voyeur, nos textos – publicados em sua maioria aqui na Escotilha – Al’Hanati é um observador singular. Na rua – durante uma conversa com o vendedor de abacaxi –, pela janela do apartamento – quando observa de longe a monotonia da cidade – ou discutindo a hospitalidade em países europeus pouco convencionais – Sérvia e Letônia, por exemplo –, Bula para uma vida inadequada investiga a essência das relações e das possibilidades de interação entre pessoas e lugares.
Diante da vida, em contraponto ao sonho, Bula para uma vida inadequada é a literatura frente ao impasse, um chamado à sensibilização sem qualquer abstração.
Se por um lado existe a urgência e a atemporalidade que a internet exige – ou pensamos que exige –, por outro as crônicas concentram em seus poucos parágrafos exatamente aquilo que precisa ser dito. Nesses pequenos conflitos pós-modernos – o telemarketing invasivo atrás de um tal Cléber, o almoço em um restaurante para lá de conversador ou a burocracia kafkiana de um banco estatal –, o cronista se agigante entre uma ironia fina e de um sarcasmo delicado. Tudo deliberadamente construído para criar a atmosfera de uma literatura lúdica na tentativa de fugir da nossa modernidade líquida.
“Viver é que é o grande perigo”, dizia Belchior. Diante da vida, em contraponto ao sonho, Bula para uma vida inadequada é a literatura frente ao impasse, um chamado à sensibilização sem qualquer abstração. É o cotidiano em estado puro, puríssimo é possível dizer, cuja complexidade e necessidade de ajuste só podem ser comparadas ao funcionamento, quase que estoico, de uma máquina de pinball.
Bula para uma vida inadequada é sagaz ao capturar o zeitgeist e explorá-lo com um elemento comum, quase banal, como se não fosse ele o reflexo de uma sociedade cada vez mais sociopata e hedonista. Sendo a crônica é um bálsamo, como disse Luís Henrique Pellanda na apresentação do livro, por que parecemos ainda estar tão equivocados? Difícil dizer, mas talvez nem exista resposta. Quem sabe tudo o que é preciso saber já está escrito nas páginas dos livros.
BULA PARA UMA VIDA INADEQUADA | Yuri Al’Hanati
Editora: Dublinense;
Tamanho: 160 págs.;
Lançamento: Junho, 2019.
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