Seria pura redundância falar aqui da centralidade de Maria Bethânia na cultura brasileira. E talvez não haja muita discordância ao assumir aqui que nossa Abelha-Rainha – ou, na expressão que também gosto de usar, nossa orixá na terra – é, hoje, a maior intérprete que temos entre nós. E há 30 anos, Bethânia realizava um feito incrível: gravava As Canções que Você Fez Pra Mim, um disco de composições de Roberto Carlos e Erasmo Carlos que ganhou uma vida própria, independente do quão conhecidas as músicas já eram antes que ela as interpretasse.
O que faz de alguém um grande intérprete musical? Uma resposta possível talvez esteja na capacidade de adotar um repertório como se fosse seu – pense, por exemplo, em como Elis Regina transformou “Como Nossos Pais”, de Belchior. Fica mais difícil imaginar determinada música na voz de outra pessoa.
As Canções que Você Fez Pra Mim, disco de 1993 de Maria Bethânia, tornou-se com o tempo o seu álbum mais vendido. Ele superou um milhão de cópias e bateu Álibi, de 1978, que conservava este posto desde então. O disco foi feito por proposta da sua gravadora na época, a Polygram, e a cantora aceitou a ideia com o compromisso de ter total liberdade no projeto.
No total, foram 11 músicas escolhidas por Bethânia e que trouxeram vida a um disco romântico e extremamente popular (diz-se que Roberto Carlos só voltou a autorizar que outra cantora fizesse um disco com repertório exclusivo de suas músicas quando Angela Maria gravou, em 2017, Angela Maria e As Canções de Roberto & Erasmo). As gravações foram realizadas entre Los Angeles e Londres, com produção artística de Guto Graça Mello.
E o que há de mágico neste disco que fez com que ele se tornasse o mais vendido de uma cantora que, de certa maneira, é uma unanimidade nacional? Talvez possamos ter vislumbrado em As Canções que Você Fez Pra Mim um casamento perfeito que nunca mais se repetiu: de composições poderosas que, por fim, encontraram a voz (e a alma) ideal para serem pronunciadas.
Bethânia e Roberto, uma relação antiga
No livro Roberto Carlos em Detalhes, o jornalista Paulo Cesar de Araújo descreve um diálogo entre Bethânia e seu irmão, Caetano Veloso, ocorrido em 1967. Bethânia sugeriu que Caetano assistisse ao programa de Roberto Carlos – na época, o nome mais forte da chamada Jovem Guarda. Ouviu em resposta que não acompanhava televisão.
Segundo conta Araújo, Bethânia teria dito ao irmão que ele estava por fora. “Este pessoal da música brasileira não tem vitalidade e está um negócio muito chato e deprimente. Roberto Carlos é que é forte. Tem muito mais vitalidade e poesia nas coisas deles”, respondeu então.
Este “namoro” musical (mais tarde, Roberto, em seu programa, cantaria “Andaluzia”, de Braguinha, fazendo referência à bela gravação que Bethânia havia feito da música) pode parecer um tanto inusitado. Afinal, ainda que Bethânia não tenha sido exatamente parte do movimento tropicalista – protagonizado por Caetano e Gil – ela estava próxima à criação artística desse grupo, que tinha forte discurso vinculado à vanguarda na época.
Todo o movimento era visto, inclusive pela imprensa, como uma contraposição ao rock mais “leve” da Jovem Guarda, que não carregaria muita pretensão e estaria mais próximo de públicos alienados à situação política do país. Contudo, como Bethânia já deixava claro em 1967, ela tinha mais proximidade com Roberto e Erasmo do que poderia parecer.
As faixas de ‘As Canções que Você Fez Pra Mim’
Em 1993, portanto, esta admiração recíproca gerou um fruto definitivo, consolidado em 11 músicas que, por vezes, transitam por escolhas que podem parecer mais óbvias, como “Detalhes” e “Emoções”. Mas, em meio aos hits, há canções que ganharam sua vestimenta final na voz de Maria Bethânia.
Certamente, não há desilusão amorosa que tenha sido relatada de maneira mais tocante do que o tom empregado por Bethânia para interpretar “As Canções que Você Fez Pra Mim”.
Certamente, não há desilusão amorosa que tenha sido relatada de maneira mais tocante do que o tom empregado por Bethânia para interpretar “As Canções que Você Fez Pra Mim”. Embalada por uma guitarra que parece chorar (os acordes que abrem o disco são inesquecíveis), ela é capaz de nos levar às lágrimas ao entoar “quantas vezes você disse que me amava tanto / Tantas vezes eu enxuguei o seu pranto/ E agora eu choro só sem ter você aqui”. Não há dor de cotovelo que passe imune a isso.
Em seguida, a desilusão dá espaço para uma pérola romântica de Roberto e Erasmo, em um clássico pouco conhecido. A belíssima “Olha”, de 1975, parece levar as canções de amor a outros patamares, e é encarada com a emoção que só Bethânia consegue entregar.
Na faixa 3, surge mais uma interpretação definitiva da cantora: parece difícil imaginar “Fera Ferida” em outras vozes além da dela. Sua voz se torna extremamente potente para cantar sobre o “bicho” que se anuncia livre, mesmo que domesticado. No mesmo ano do lançamento do disco (1993), a faixa embalou a abertura da novela Fera Ferida, da TV Globo, sedimentando seu sucesso.
Bethânia segue então investindo em canções mais “lado B” (termo contestável, dada a fama de Roberto Carlos e Erasmo Carlos) e nos entrega a melancólica “Palavras”, seguida de “Costumes”, baixando a carga enérgica da música anterior.
A emoção volta a subir com a delicada versão de “Detalhes”, uma das mais bonitas entre o mar de canções da dupla. Na sequência, “Você não sabe” traz um clima de seresta ao disco, e é emendada por “Eu preciso de você”, “Seu corpo” e “Você”, que parecem descaradamente escolhidas para tocar em rádios estilo easy listening (e não há nada errado com isso).
A viagem de 42 minutos com Bethânia, Roberto e Erasmo chega ao final, de maneira dramática, com “Emoções”, a grande homenagem da dupla de compositores aos seus fãs no mundo inteiro. Mesmo tendo sido cantada tantas vezes, Bethânia parece trazer uma dignidade especial à canção que, assim como todo o álbum (em especial, as três primeiras faixas, em minha opinião pessoal), consolidou um momento único e irrepetível na música brasileira. Que sorte a nossa termos esse disco.
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