O universo do rock é um lugar muito machista, e isso é de longa data. Claro que não é apenas o rock, a indústria da música é um imenso buraco paternalista. O fato de falar de rock tem, obviamente, ligação com a banda da coluna “Radar” de hoje. A Seratones surgiu na famosa cidade de Shreveport, no estado estadunidense da Luisiana. Pode até parecer brincadeira dizer que a cidade é famosa, mas ela realmente o é, ou ao menos é conhecida em virtude das constantes citações na série True Blood.
No meio de seus quase 200 mil habitantes surgiu o quarteto liderado pela magnífica voz de AJ Haynes, acompanhada de Connor Davis na guitarra, Adam Davis no baixo e Jesse Gabriel na bateria. Mas o que chama a atenção na banda não é simplesmente o fato de ter uma mulher à frente, mas quem é essa mulher. AJ é negra, faz questão de ostentar um lindo cabelo black-power e muitas roupas inspiradas na cultura africana. Contudo, mesmo minha avaliação é bastante superficial, já que Haynes vive um lado camaleônico, fazendo de seus looks parte integrante de sua marca, do que a cantora e guitarrista pretende transmitir ao público que vai aos seus shows e ouve suas músicas.
O grupo faz um rock cru, sujo, carregado em distorção. O peso não se resume ao instrumental. As linhas vocais de Haynes são repletas de timbres arrebatadores, um mosaico bem curado da influência negra do Sul dos Estados Unidos.
O grupo faz um rock cru, sujo, carregado em distorção. O peso não se resume ao instrumental. As linhas vocais de Haynes são repletas de timbres arrebatadores, um mosaico bem curado da influência negra do Sul dos Estados Unidos. Jazz, R&B, zydeco e principalmente blues. Talvez o leitor tenha feito uma associação mental em que as informações fornecidas levaram a imaginar a Seratones como uma nova versão do Alabama Shakes e AJ Haynes como uma nova Brittany Howard. A comparação não acontece só na sua mente, mas é injusta – com ambas as cantoras e grupos.
AJ e a Seratones têm uma pegada muito própria. Get Gone, o primeiro álbum do grupo, lançado posteriormente à participação da banda no SXSW, traz um gingado e um suingue característicos do garage rock. Isso ganha amplitude com o trabalho do produtor Jimbo Mathus, que tira do Seratones uma energia eletrizante. Haynes, que teve a voz e o talento lapidados em corais de igreja desde cedo, mostra logo em “Choking On Your Spit”, canção que abre Get Gone, sua técnica apurada em encaixar trêmulos em notas incrivelmente altas, algo de difícil execução, e faz isso em uma música repleta de escárnio.
O disco segue em ritmo catártico, com a banda apresentado tudo que tem de melhor, seja em riffs acelerados como de “Sun”, ou no blues de “Don’t Need It”, onde a vocalista torna a nos presentear com sua técnica apuradíssima. Mesmo a balada “Tide”, um certo anticlímax no disco, oferece beleza ao ouvinte, muito puxado pelo enorme carisma de Haynes, quase tão maior que sua qualidade técnica.
“Keep Me”, outra balada, encerra um álbum marcante, delicioso sonoramente, ainda que possa ser acusado de pouco original. Não há como sair da audição de Get Gone sem ficar petrificado com a voz de AJ e com o trabalho de toda banda. Ainda por cima, dá margem à discussão sobre representatividade na música. Por enquanto, Haynes está no Seratones, fazendo coisas incríveis como este disco, mas certamente vai alçar voos maiores. Porque ela merece. Porque ela é gigante. Porque há poucas como ela, e precisa haver mais.
Get Gone não sai, desde seu lançamento, de minhas playlists. Acredito que o mesmo acontecerá com o leitor. Repetidas vezes.
NO RADAR | Seratones
Onde: Shreveport, Luisiana.
Quando: 2013.
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