Nos dias atuais, é comum utilizarmos as plataformas de streaming para ouvir alguma música que desejamos em qualquer momento, de forma prática e rápida. Contudo, nem sempre foi assim. Nossa forma de consumir música mudou muito ao longo dos anos e a indústria fonográfica precisou se adaptar para acompanhar essas mudanças.
A Pró-Música Brasil publicou recentemente um relatório baseado em dados da IFPI (International Federation of the Phonographic Industry) sobre o mercado fonográfico mundial em 2017. Nele, foi observado que o mercado de vendas físicas e digitais no Brasil cresceu em 23%, mais que a média mundial de 8,1%. Para a organização, este crescimento é reflexo do bom desempenho da área digital, que, em 2017, representou US$ 178,6 milhões, ou 60,4% do mercado total, em oposição à queda das vendas físicas, que rondaram os 56%.
Tais dados ressaltam o maior peso do serviço de streaming na indústria da música. Desse modo, não apenas as gravadoras estão passando por um processo para entender esse novo nicho de mercado, como os artistas também estão se moldando para garantirem seu lugar ao sol nessas plataformas.
De que forma consumimos música atualmente?
Com o advento de novas tecnologias e novos meios de comunicação e informação, as estruturas se reconfiguram para atender as novas demandas da sociedade. E foi isso que aconteceu com o mercado fonográfico. O LP se minguou com o surgimento do CD, em 1982, assim como o CD vem se minguando gradativamente com os downloads digitais e streaming.
Consequentemente, nossa forma de se relacionar com a música também vem se alterando. Com o surgimento de platafomas como Spotify, Apple Music, Deezer, Tidal, e até mesmo o YouTube, passamos a consumir música de forma mais assídua, prática e barateada. Ao contrário de antes, quando precisávamos esperar que o artista lançasse o álbum inteiro para que assim pudéssemos consumi-lo.
“A popularização das plataformas de streaming mudou totalmente nossa forma de consumir música. O ouvinte não precisa mais escolher o disco que vai comprar e ouvir. Numa plataforma, ele tem todos (ou quase todos) à disposição, numa prateleira virtual que irmana o artista iniciante e o consagrado. Isso é inovador e democrático”, conta o jornalista Mauro Ferreira, crítico de música do G1.
Essa facilitação promovida pelas plataformas alterou também a percepção que o público tem da música, como é exposto em texto de Alexandre Lerch, republicado para a Gazeta do Povo. Alexandre analisa que o público não mais enxerga a música como algo que se compra, ou possui, mas como algo que é acessado e executado quando quiser, como dados disponíveis gratuitamente na internet.
Desse modo, instaura-se o questionamento: será que o streaming de músicas irá substituir de vez o mercado físico ou é possível a coexistência dos formatos? O crítico de música e criador do site de cultura pop Scream & Yell, Marcelo Costa, aposta na última opção, apesar dos pesares.
“Acredito profundamente que a solução é a coexistência de formatos, mas a direção das grandes gravadoras não costuma ser tão inteligente assim. Parte do problema é o vício na droga do dinheiro fácil: muitos desses diretores trabalharam num mercado que vendia 10, 15, 30 milhões de um original e, no contexto atual, ainda sonham com esse mercado que não vai voltar mais. Por isso desprezam vendas de 5 mil cópias, sendo que são essas vendas somadas de diversos artistas que podem ter potencial para manter a indústria de pé, junto a diversos outros pequenos lucros”.
‘O ouvinte não precisa mais escolher o disco que vai comprar e ouvir. Numa plataforma, ele tem todos (ou quase todos) à disposição, numa prateleira virtual que irmana o artista iniciante e o consagrado’.
Para acompanhar essas mudanças, umas das medidas promovidas pela indústria fonográfica foi de acrescentar as reproduções de músicas por streaming nos cálculos para concessão de discos de ouro, platina, multiplatina e certificações individuais. Portanto, a partir de 2016, a Associação da Indústria Fonográfica dos Estados Unidos (RIAA) passou a considerar 1.500 streamings de músicas com a venda de 1 álbum, enquanto 150 streamings conferia o download de uma única canção.
Muitos artistas já foram beneficiados com essa mudança. O principal exemplo disso é o rapper Kanye West, que conseguiu o feito de ter o primeiro disco de streaming a conseguir certificado de platina nos EUA, com o The Life of Pablo. E, mais recentemente, o álbum 4:44, do rapper Jay-Z, que recebeu o mesmo certificado após menos de uma semana de lançamento. Ambos os registros não têm versão física.
O público abraçou as plataformas e a indústria percebeu o quanto elas são lucrativas e, por isso, se adaptou para recompensar os artistas de acordo. Mas estes últimos precisaram se adaptar também, utilizar estratégias para conseguir espaço na era do streaming. Mas nem todas as medidas tomadas por eles são justas.
Jabá 2.0, compra de views e usuários robôs
A prática de “jabá” é algo presente na indústria musical há bastante tempo, e consiste no ato de gravadoras pagarem para rádios tocarem músicas de seus clientes. Os tempos mudaram, contudo, práticas como essas continuam sendo exercidas e reinventadas. Hoje existe também o chamado “Jabá 2.0”.
Nesta situação, substituímos o contexto das rádios pelas plataformas de streaming. Playlists famosas no YouTube e no Spotify viram espaços comerciais, em que artistas e bandas podem pagar para terem suas músicas veiculadas nessas listas, que são reproduzidas diariamente por milhares de pessoas.
Uma playlist que lucrou muito com isso foi a criada por Adriano da Silva, de Cuiabá. Ela era – e continua sendo – a mais famosa do gênero sertanejo no YouTube, atualmente com mais de 1,5 bilhões de visualizações. Em 2016, ela foi vendida para uma empresa da Romênia.
No Spotify, o jabá 2.0 pode ser exemplificado com a recente ação de marketing entre a plataforma e o rapper Drake. A estratégia consistiu na inserção da imagem do cantor na capa de todas as playlists do serviço musical, de modo a promover o lançamento do álbum Scorpion. Este que foi o primeiro a atingir 1 bilhão de streams em uma semana.
“Eu acho que vale a pena você investir em mídias, e tem que investir nelas, mas isso tem que ocorrer da maneira correta. É perceptível fraudes nos números de algum artista quando seu desempenho nas plataformas não mantém um padrão esperado. Por exemplo, um artista sem expressão lança uma música no YouTube e, poucas horas depois, esse vídeo tem muitas visualizações, mas o crescimento não é proporcional à quantidade de inscritos, curtidas e comentários. Assim como esse número despenca ao longo do tempo (dias, semanas e meses). É sinal que tem algo errado”, explica Eduardo Prata, produtor e diretor musical.
Além dessa nova forma de jabá, também existe um mercado que vende views para essas plataformas. Vários sites propõem a concessão de uma quantidade “orgânica” de views/plays em algum material musical em troca de uma quantia em dinheiro.
Há um cenário fraudulento para inflar esses números. Nele há não só a venda de playlists particulares, como atalhos de manipulação pelos usuários, como os robôs, e as “fazendas de likes“, espaços que contêm painéis com centenas de smartphones que ficam o tempo inteiro gerando esses plays. Este quadro é bem destrinchado nesta reportagem do G1.
“A compra de curtidas, visualizações e número de usuários fictícios não configura um crime específico, pois ainda não temos legislação própria para essas situações. A conduta pode respingar no campo da moralidade, mas criminalmente ainda não há como se responsabilizar alguém. Em tese, dependendo do caso, poderíamos falar em crime de estelionato, mas aí será necessário ficar configurada a percepção de vantagem ilícita, além de outros requisitos exigidos pelo art. 171 do Código Penal”, explicaram os advogados André Cabral e Eduardo Cavalcanti, especialistas em direito empresarial e penal, respectivamente.
Desse modo, fica a pergunta: no atual cenário do mercado fonográfico, vale tudo para conseguir se destacar e conseguir notoriedade? Mauro Ferreira acredita que não. “Deveria valer a honestidade. Mas truques existem desde que o samba é samba. As gravadoras sempre inflaram números de vendas de CDs. Ou seja, continua tudo igual”.
Marcelo Costa também encara essas práticas como releituras do que vem ocorrendo nos últimos 70 anos. Porém, vê que a chance do artista “se queimar” com o público nunca foi tão palpável como agora. “O ‘vale tudo’ carrega um peso de risco enorme nos dias de hoje. Por esse prisma, é fácil dizer que vale tudo quando o artista está por cima. O lance é vê-lo por baixo e perguntar: vale tudo? Creio que muita gente vá responder que sim, porque no mundo atual até o fracasso é mercantilizado. E precisa ser muito sonhador para acreditar que a indústria deixará de manipular algo que rende muito dinheiro. No fundo, como sempre, dependerá da consciência do fã responder essa questão“.
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