Por Heloisa Nichele*, especial para A Escotilha
Não é a toa que o sambista Diogo Nogueira abriu seu show, um dos últimos na Corrente Cultural neste ano, com um texto em homenagem aos negros. Além de estarmos no mês da consciência negra – “Viva o 20 de novembro” – a homenagem já valeria em memória ao povo que trouxe o samba para o Brasil – ou semba, na etimologia africana. Vide as palavras de Vinicius em Samba da Benção. “Porque o samba nasceu lá na Bahia / E se hoje ele é branco na poesia / Se hoje ele é branco na poesia / Ele é negro demais no coração”.
O show começou às 18h50 e contou com a participação da Orquestra À Base de Cordas de Curitiba, formada por Rodrigo Marques (baixo), Renan Bragatto (bandolim), Fábio Cardoso (piano), Helena Bel (violino), Hestevan Prado (violão), Julião Boêmio (cavaquinho), Junior Bier (viola caipira), Luis Rolim (percussão) e o diretor artístico João Egashira (violão). A banda, criada em 1988, abriu com duas músicas antes do sambista subir ao palco.
Chegou com a voz grave e o sorriso no rosto que arrancaram gritos em coro do público. Elogios pipocaram de diferentes cantos da plateia, que lotou a Boca Maldita, mesmo com a brisa gelada e a chuva à espreita, provando que para a batucada do samba não há tempo ruim. “O ambiente está muito bom, a Orquestra e o Diogo estão maravilhosos”, exclamou Eloina Coelho Martins, com os olhos entusiasmados – azuis como os do sambista – que aos 74 anos procuravam as mãos do artista a beira do palco. E conseguiu. “Escreva que eu peguei nas mãos dele”, pediu.
E a chuva começa quando o show termina, 19h50. De certo esqueceu de cair entretida na música.
O repertório contou com músicas do novo álbum de Diogo Nogueira, Porta-voz da Alegria – nome da música que abriu o show. “O repertório girou em torno do que o Diogo tem feito nos shows dele, musicas do novo CD e músicas que ele gravou anteriormente”, conta João Egashiba, regente da Orquestra. O cantor também homenageou seu pai, João Nogueira, com Espelho e Poder da Criação, além de outros artistas, com Cazuza e Djavan. Não esqueceu dos negros sambistas Emílio Santiago e Bezerra da Silva, com Deixa eu te Amar e Malandro é Malandro e Mané é Mané, nesta ordem.
Samba na terra das araucárias
Samba-canção, samba de breque, samba de roda, samba-enredo e samba rock. O ritmo se criou aqui, mas surgiu no gingado dos irmãos de cor do outro lado do Atlântico. Eis a música brasileira. E se o samba nasceu lá na Bahia, em Curitiba foi na Vila Tassi. Ali, onde hoje é a região do Capanema, foi o reduto dos negros na cidade e onde surgiu a Colorado, primeira escola de samba de Curitiba, como conta o pesquisador João Carlos de Freitas em seu livro lançado em 2009. Negro de alma e sambista de coração, lembra de quando ainda era moleque e ouvia os sambas da Rádio Nacional do Rio de Janeiro pela caixa a válvula no alto da estante. Pegou gosto. “Quem não gosta de samba / Bom sujeito não é / É ruim da cabeça / Ou é doente do pé”. Pelas obras-primas, salve Caymmi e salve João!
O protagonista da história é Ismael Cordeiro, o Maé da Cuica, fundador da Colorado. “O samba não existia antes do Maé”, afirma João. Foi no começo da década de 40 que começou o ritmo na Vila. “A maioria dos negros trabalhava na rede ferroviária, e nos finais de semana se reuniam por ali para jogar bola e tocar samba. Era diferente do que já existia em Curitiba. A batida era rápida e parecida com o samba do Rio de Janeiro”, explica o pesquisador.
Em 1946 a Colorado desfilou pela primeira vez oficialmente no carnaval de Curitiba. Além de levar o samba para a rua, Maé levou o negro. “Havia a demarcação de um território ali, a Vila Tassi era dos negros, o resto da cidade era dos brancos. Com o samba apareceu mais trabalho para músicos negros na cidade. Isso aconteceu depois da afirmação da escola de samba”, relembra João. Foi à passos lentos, mas ritmados.
A Colorado resistiu até o fim da década de 90. O gogó e o samba no pé não conseguiram competir com escolas de produção mais luxuosa. O desfile acabou, mas os grandes sambistas não foram esquecidos. Nas rodas de samba da Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio – criada por ex-escravos em 1888 – que resgata a vanguarda do ritmo na cidade, ou na roda semanal com novos compositores, no Samba do Compositor Paranaense, o samba do Paraná se reinventa. Diogo Nogueira, além de fazer parte na nova geração de sambistas brasileiros, convida outros artistas para conversar e cantar no programa Samba na Gamboa, que vai ao ar na TV Brasil e é retransmitido pela TV Cultura. Clima intimista. De boteco.
E a chuva começa quando o show termina, 19h50. De certo esqueceu de cair entretida na música. Fez lembrar um samba, de outro mestre compositor negro. “O sereno ta caindo / Ta caindo devagar / Vai cair chuva miúda / E o samba não vai parar”. Salve Martinho da Vila!
* Heloisa Nichele é fotógrafa e graduanda em jornalismo pela UFPR. Através das lentes da câmera e da escrita, descobriu sua paixão em conhecer pessoas pelas suas histórias. Ama cinema, literatura e defende Beatles e Chico Buarque acima de tudo.