Já ouvi todo tipo de conversa sobre rock em bares, almoços, fins de tarde e happy hours. Da mesma forma como já li muitas revistas, sites, artigos e teses sobre a magia que ultrapassa a barreira dos riffs e entra no místico, no subliminar e nas ligações entre um acontecimento e uma nota. Na maioria das vezes, confesso me perder em linhas, frases e teorias por irem tão a fundo a lugares onde nunca pretendi cavar.
Por conta disso, levando em grande parte minha própria experiência, concluí que a magia por trás do gênero ainda pertence às memórias e à maneira peculiar que elas têm de atropelar seus sentimentos como um Runaway Train. E daí que meus amigos sabiam a cor da cueca que o Syd Barret usou em 12 de março de 1962? Isso não mudaria nada na minha vida.
Nessas últimas semanas eu fui assombrado pelos espíritos de Paul e John. Não, eu juro que aqui não entra uma piada em relação à conspiração da possível morte de McCartney, mas sim de que senti que, por cada lugar que eu passava, eu tinha ambos nos meus ombros como se fossem minha consciência. John me tentava a ouvir aqueles meus clássicos compilados, enquanto Paul me descrevia cada composição ao ouvido. O pensamento foi longe e os Beatles, mais de dez anos depois, voltaram a fazer parte do meu dia a dia. Não acredito em coincidências, então sabia que era um aviso dos deuses do rock e eu deveria prestar muita atenção nisso.
As cenas que se seguiram desde então pareciam aqueles filmes de suspense. No dia seguinte ao primeiro contato, acordei de um sonho beatlemaníaco e fui para o trabalho. No meio das digitações, fui abordado por um colega que acabara de fazer aniversário e me mostrou seu presente: um livro antológico sobre todos os mistérios nas músicas do quarteto.

Assombrado, olhei para minha tela. Na minha timeline do Facebook, em destaque, o texto me pedia para clicá-lo: “[dialética do pop] – Beatles” (aqui). Cliquei, sem reação. O texto era de 2006, mas pulava em destaque, naquele dia de 2015. Well played, John e Paul. Devo admitir.
O texto trazia um paralelo espetacular do autor sobre Lennon, McCartney e os caráteres apolíneo e dionisíaco descritos por Nietzsche em sua obra. Naquele momento, vivi uma nova cena de filme: congelou a câmera em meu rosto estupefato, o fundo ficou preto e começaram a rodar pela minha cabeça imagens de todas as teorias macabras envolvendo os garotos de Liverpool. Concluí de imediato que Nietzsche, se estivesse vivo nos anos 60, teria sido o maior fã do grupo. As questões da razão de Paul e o caos de John descreviam os Beatles, a música e todas as experiências.
Pela primeira vez, deixei de ver Beatles como uma banda que eu gostava. Passei a vê-los com a obra-prima e divina que eles mereciam ser vistos.
Para concluir a análise, o autor nos fala sobre a enfim separação de “Apauleo” e “Johnísio” e o quanto se tornaram músicos excelentes, mas sem aquela química poderosa que tiveram juntos e que, desde então, o melhor trabalho solo de um beatle era o de George.
George Harrison, por sua vez, sempre foi meu integrante favorito. Seus arranjos de guitarra e sua experiência com a cítara, fruto de sua devoção religiosa, sempre soaram em meus fones de ouvidos de maneira hipnotizante e incrível. Meus dois trabalhos favoritos, inclusive, não pertencem nem a Paul, tampouco a John; ambos passaram pela genialidade de George: “Something” e “While My Guitar Gently Weeps”.
– Entendi, Guilherme. Mas o que tem a ver essa história dos Beatles e suas lembranças com Clapton?
A faixa “While My Guitar Gently Weeps” possui um dos mais belos arranjos de guitarra dos Beatles. E o gentil lamento da guitarra é fruto do talento de Eric Clapton, que emprestou suas notas a um trabalho uncredited.
“Numa viagem como essa é que construí minha própria ideia: a magia do rock é feita de lembranças, tanto as de quem compõe quanto as de quem ouve.”
E que lamento Clapton fez. Solos construídos com um virtuosismo de quem entende o significado e a significante de cada nota usada. Esqueça aqueles solos longos, rápidos e ágeis dos mais renomados guitarristas que a molecada quer aprende a tocar igual: Clapton e George fazem você sentir todas as emoções necessárias em poucos minutos. É nesse momento que as lembranças se encaixam.
Quando iniciei no mundo do rock e meus pais ainda moravam juntos, costumávamos sentar no sofá e assistir a shows pela televisão. Em um deles, Clapton subiu ao palco.
A aula veio do bastidor. Meus pais, que acabaram de me presentear com o Blue Album, me explicaram sobre o virtuosismo de Clapton na faixa 2 do disco 2. E logo quando ele começou a se apresentar com “Layla”, minha mãe me contou toda a história dos dois amigos (Eric e George), uma parceria e um triângulo amoroso envolvendo Pattie Boyd, esposa de Harrison.

Ao relembrar esse sábado à noite na sala de casa, corri ouvir Clapton para reviver aqueles bons tempos. Fui tão a fundo que caí em um de seus mais breves e magníficos trabalhos: Derek & The Dominos.
Foi naquele álbum de 1970, Layla and Other Assorted Love Songs, que ouvi a faixa da forma que ele havia tocado naquele show. Não era a versão acústica, com toques de blues. Era a brutalidade, a raiva da incompreensão e a paixão platônica traduzidas em riffs e mais riffs que soavam como um desabafo, uma declaração.

Aquele álbum era magnífico. E cada vez que se encerrava, eu me forçava a dar play de novo.
Layla and Other Assorted Love Songs é uma obra-prima (até porque é a única obra do grupo), extremamente atemporal. A sua batida é muito a frente de seu tempo, enquanto sua mixagem é claramente vintage demais nos tempos modernos.
Esse paradoxo transporta qualquer ouvinte para uma fenda entre o tempo e o espaço, em que todos os sons são greatest hits. E a experiência se torna ainda melhor e mais completa, com a participação de Duane Allman. O dueto de “Layla”, nos minutos finais, coloca ambos os guitarristas frente a frente em um duelo de maestria cativante demais.
Mais uma vez, uma cena digna de filme vem à cabeça. Desta vez um verdadeiro plot twist.
De uma pequena sedução de dar play em Beatles, uma trama complexa e minunciosamente desenhada passou pela obra dos garotos de Liverpool até me transportar ao universo de Clapton, Layla e Harrison. Foi como se minha consciência, Paul e John, Apolo e Dionísio respectivamente, me considerassem pronto e digno de uma apresentação às suas lembranças, aos personagens que fizeram parte dessa história.
Numa viagem como essa é que construí minha própria ideia: a magia do rock é feita de lembranças, tanto as de quem compõe quanto as de quem ouve. E por mais que muitos discordem dessa minha visão, tão apaixonada e devota, nunca fez tanto sentido concluir que os laços entre essas lembranças que realmente traduzem o sentimento por trás de cada faixa. E Nietzsche nos mostra que tanto na emoção quanto na razão, somos conquistados.
Foi bom compartilhar esse momento com vocês. Até a próxima.
Apenas a título de curiosidade: citadas acima, tanto “Something” quanto “Layla” foram músicas feitas para Pattie Boyd, escritas por George Harrison e Eric Clapton, respectivamente.