Peter Hook é um mentiroso. Vamos aos fatos: em uma entrevista feita pelo José Augusto Lemos, da saudosa revista Bizz (Ano 5/edição nº. 2/fevereiro de 1989/NCz$ 1,70), o repórter pergunta se os livros An Ideal For Living e Wayward Distractions seriam confiáveis. Hook responde o seguinte: “são alright, mas têm mais especulação e interpretação do que a história da banda propriamente dita. Isso ninguém conseguiria escrever…a não ser nós mesmos. E não escreveremos porque, aí… (Com o indicador faz o gesto de quem corta sua própria garganta)”.
Não sei ao certo por que ele fez esse gesto e tampouco por que mudou de ideia. Talvez por conta da briga que teve com Bernard Sumner tenha decidido largar na frente do ex-amigo e lançar a biografia Joy Division: Unknown Pleasures, publicada no Brasil pela Seoman. O embate entre os dois começou quando, há alguns anos, Hook decidiu fazer uma turnê cujo setlist era só com as músicas do álbum Unknown Pleasures. Para irritar o baixista, Bernard Summer anunciou, no ano seguinte, a volta do New Order. Hook sequer foi avisado. A história está nos tribunais.
E também não me surpreende por Hook ter mentido. Vindo dele não seria novidade, pois todos que acompanharam a trajetória do Joy Division e depois do New Order sabem que ele nunca teve fama de bom moço. Mas vou te dizer uma coisa: se você ler o livro pode ser que mude de ideia, assim como eu. Sempre admirei Hook pelo seu talento como baixista, pelo fato de tocar de um jeito “errado” (com três dedos, ao invés de quatro como é a forma mais comum), por usar a correia mais longa (coisa copiada de Paul Simonon, do Clash) e, vá lá, pelo charme sem-vergonha que estampa na cara.
Mas agora tenho outro Hook na memória. Um cara mais respeitoso (mas não menos rude), pelo lado sincero que mostrou ao colocar no papel histórias inéditas e bem menos sombrias. Pelo contrário, o livro rende muita risada. E não é aquela risadinha tímida. É daquelas que se você está lendo perto de alguém corre o risco de passar por maluco.
‘Ele pode ter mentido ao dizer que nunca escreveria sobre a banda dele. A banda que fez sons incríveis, que tinha talento, esforço e pouquíssima grana do bolso (algo em torno de 15 libras por semana para cada um). Mas creio que não mentiu quando agradeceu a Ian por ter lhe mostrado outro mundo sonoro. Pela confissão da culpa e arrependimento. Por não ter dito adeus.’
Ele pode ter mentido ao dizer que nunca escreveria sobre a banda dele. A banda que fez sons incríveis, que tinha talento, esforço e pouquíssima grana do bolso (algo em torno de 15 libras por semana para cada um). Mas creio que não mentiu quando agradeceu a Ian por ter lhe mostrado outro mundo sonoro. Pela confissão da culpa e arrependimento. Por não ter dito adeus.
Da infância difícil em Salford, sua cidade natal, até a adolescência, dividida em períodos de vacas magras e grana no bolso, Hook faz um breve relato desse período. Irene, a mãe, era forte e determinada, apesar de atrair homens bêbados e violentos. Botou dois para correr. O livro é dedicado a ela que foi quem ajudou o filho a comprar seu primeiro baixo.
A biografia é focada na história do Joy Division e, principalmente, na figura de Ian Curtis. Segundo Hook, um cara simpático, gentil e educado. Mesmo andando com uma jaqueta com “hate” escrito nas costas. O baixista faz questão de dizer que Ian era o cara que mais acreditava no Joy Division. Era ele o fio condutor que levava os amigos ao que até hoje ouvimos e sentimos quando colocamos Unknown Pleasures ou Closer pra tocar. E é triste ouvir de Hook que Ian era quem os unia. Fora isso não havia amizade,
Hook lamenta que houvesse vários “Ians” em um só (Deborah Curtis já tinha cantado essa bola em Touching From a Distance). Havia o Ian casado, pai de família; o vocalista de uma banda que aprontava altas bagunças; e o Ian acompanhado de Annik Honoré, chato e intelectual. O Ian do Joy Division era o melhor. Brincalhão, sacana e talentoso. Aquele que roubava junto com o resto da banda desde cervejas, objetos de backstage, até frangos.
A relação da banda com Tony Wilson, da Factory, e com o empresário Rob Gretton e a total liberdade que o Joy Division tinha no processo criativo de tudo o que produziu, têm destaque na narrativa. Na maioria das vezes com apreço, exceto pelas horas em que Martin Hannett, que produzia a banda, resolvia judiar, judiar e judiar. Principalmente de Steve Morris. Graças à crueldade de Hannett, ganhamos Steve com um dos bumbos mais precisos do Pós-Punk. Há gratidão pelos três. Pelo fato de impedirem o Joy Division de ter caído nas garras de grandes gravadoras como outros colegas caíram.
Quando se pensa o quanto Ian, Peter, Bernard e Steve deram duro, compondo, gravando, fazendo shows e ainda trabalhando em empregos formais para se manterem, parece que fica mais difícil aceitar por que Ian Curtis se matou se era certeiro que eles iriam colher bons frutos. Mas, por outro lado, de forma contraditória, é bem possível aceitar a morte de Ian porque a pergunta que se faz é “a que preço?”
Ler Joy Division: Unknown Pleasures deu a mim a sensação de estar em um porto seguro. E um pouco de alívio por saber que Ian não era só tristeza. Se Hook está sendo sincero, ou não, se resolveu lançar o livro só pra levantar uma grana, fica difícil saber. Mas “foda-se, o livro é dele.”
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