Um estrangeiro e um mapa. O mapa, algo criado para encontrar, enquanto um estrangeiro é algo na procura de um lugar para se encontrar. Encontrar não só geograficamente, mas se encontrar no puro sentido de pertencer. Assim como o estrangeiro de Albert Camus, que não se sente parte de algo em sua terna indiferença ao mundo. Ser estrangeiro é ser fração, embora inteiro, parte. Destoante, é assim que o sexteto carioca Baleia apresenta seu segundo disco, Atlas, com complexidade e beleza ressoantes dentro da angústia e sinceridade da visão de um estrangeiro dentro de si mesmo, tentando se entender e entender o mundo.
A Baleia é diferente desde o primeiro acorde de “Casa”, a faixa inicial de Quebra Azul (2013), o primeiro disco do sexteto. E se “Casa” era diferente, cada uma das seguintes oito faixas do álbum eram diferentes dela. É impossível definir e etiquetar a Baleia, que em tempos é leve, em outros densa; em tempos sutil, em outros potente. Se a canção inicial do primeiro álbum era alegre e mais acessível dentre as outras composições, o recém-lançado Atlas começa com uma quebra.
“Hiato” começa ofegante, com ressonâncias agressivas que rapidamente quebram para a voz doce de Sofia Vaz, que tem em seu quase-refrão instrumental a volta das guitarras distorcidas e agressivas, em uma estrutura que – assim como todas as músicas da banda – foge do clichê estrofe-refrão. Na sequência, quase sem sentir a mudança, a banda engata “Duplo-Andantes” e sua percussão tribal e densa. Com ares teatrais que caem tão bem em tudo que a banda faz. É possível imaginar cada acorde como parte de uma encenação teatral, em que cada canção é um ato, cada ato uma passagem diferente de uma história fantástica que poderia muito bem se passar em um mundo imaginário.
Três anos depois do primeiro disco, Atlas mostra uma evolução claríssima da banda, tanto em forma musical quanto em narrativa. É um trabalho complexo e inteiro, difícil de entender se pego por partes. Como “Estrangeiro”, um dos pontos altos do álbum e divulgada antes como single, que soa muito melhor quando escutada em sua posição dentro de Atlas. A dramaticidade de “Triz (Ida)” que dá espaço para a experimental e pesada “Volta”, ou a adição cirúrgica de “Véspera”, a romântica e serena faixa que se destaca em meio à densidade do disco, que vem antes da incrível “Salto” que encerra o conciso álbum de oito atos.
Atlas poderia muito bem ser uma trilha de cinema, uma ópera, um livro de poemas. É um disco que coloca a Baleia acima de boa parte do que é feito na música brasileira atualmente.
Atlas poderia muito bem ser uma trilha de cinema, uma ópera, um livro de poemas. É um disco que coloca a Baleia acima de boa parte do que é feito na música brasileira atualmente. Vai além de qualquer comparação na linha de “Arcade Fire ou Radiohead do Brasil”, pois não dá para comparar esse sexteto. É música imersiva, do tipo que você pode ouvir dez vezes e, quando colocar um fone e prestar atenção, vai escutar um novo instrumento que antes não tinha notado. Ao começar, pode soar estranho da primeira vez, interessante na segunda, bonito na terceira e magnífico na quarta.
A experiência de Atlas nos leva tanto para dentro da narrativa no mundo construído pela banda que cada virada parece nos carregar, em uma sensação que só consigo comparar com o que sinto ao ouvir as músicas do Sigur Rós. Quando, aos três minutos de “Salto”, a faixa final, a canção cresce em um clímax seguido pela tranquilidade que nos leva aos acordes derradeiros do disco, a descarga de sentimentos emociona. É como uma explosão contida após momentos de tensão, o dilúvio guardado no pulmão durante “Estrangeiro” sendo libertado. É música como sensação. Não é complexa por querer ser difícil ou elitizada, é porque a complexidade é uma condição sine qua non do ser humano, e esse grupo de cariocas sabe transformar isso em arte.