“Música tanto faz. Pra mim serve só para ter um barulhinho de fundo e a gente não ficar em silêncio total. Televisão também serve, aliás, qualquer barulho serve”. Ouvi essa declaração, indiscretamente surpreendida, da boca de um colega de trabalho algum tempo atrás, quando dividíamos certa vez uma carona e perguntei ao rapaz se ele se importava com o CD que estava tocando no carro. Lembro vagamente do diálogo, mas me recordo perfeitamente do choque que levei quando percebi que certas pessoas não apenas aceitam escutar qualquer coisa, mas muitas são (ou dizem ser) indiferentes à música.
Até então, isso nunca havia passado pela minha cabeça. A indiferença, segundo o que consta nos dicionários, é a ausência total de comoção ou interesse para qualquer estímulo. É apatia. Desprendimento. Um estado de quem não se deixa conduzir por sentimento algum, amor, ódio, raiva, incômodo, curiosidade, nostalgia ou o que quer que seja. É distanciamento. E até um tanto de frieza. Como é possível ser indiferente a um som como a música, popular ou erudita, ondas mecânicas e intangíveis que se propagam no espaço e minimamente mexem com os nossos sentidos mais involuntários e inconscientes, criam e revisitam memórias?
Quando eu era bem pequena, ainda na pré-escola, a professora da minha turma nos levou para uma atividade fora de sala de aula. A proposta era que todas as crianças, no mais absoluto silêncio possível de quando se tem cinco anos de existência e muita energia para gastar, caminhassem pela quadra da escolinha tentando identificar todos os tipos de sons possíveis. Barulhos de qualquer tipo. O Bom Retiro, bairro onde eu estudei nessa época, fica perto do centro de Curitiba, mas é uma área residencial e tem algumas ruas muito silenciosas, como era o caso daquela pela qual caminhávamos de ouvidos atentos.
Lapsos de memória de criança: lembro de pensar, nos primeiros minutos daquela atividade, que eu não estava escutando nadinha. Estava procurando por música, e não por sons, mas provavelmente não entendia isso no momento. Todos levaram um caderninho de desenho, e a professora dizia: “Prestem muita atenção, no começo pode parecer que a rua está em silêncio, mas há muitos sons por aqui”. E em seguida pediu para desenharmos tudo o que ouvíamos. Não demorou muito para as crianças – e uma pequena Fernanda incluída na brincadeira – começarem a desenhar. Passarinhos cantando, um apito distante do sorveteiro passando no bairro, o barulho dos pés pisando na grama e nas folhas secas, uma mulher falando alto no telefone dentro de casa, o assobio dos lixeiros para o caminhão de lixo, vento, árvores balançando seus galhos, motor de um carro ligando. Os sons estavam por toda a parte.
Viver em centros urbanos é quase um sinônimo de viver em meio ao ruído eterno, e aquela simples atividade da pré-escola até hoje me faz pensar como nos acostumamos tanto com essa ausência de ambientes silenciosos e limpos no aspecto sonoro. Esse excesso de informações e estímulos é tão grande que sem percebermos, nos tornam indiferentes a eles, e em alguns casos até dependentes da presença de qualquer ruído, como me fez notar meu colega de trabalho na situação do carro descrita no início.
Da importância do silêncio
Segundo ensinamentos budistas de Monja Coen sobre o silêncio, essa indiferença aos estímulos dos nossos sentidos justamente por causa do excesso deles nos distancia da importância das pausas. Para a monja, ao entrar em uma sala, observamos os móveis, as pessoas, as janelas, as cortinas, mas raramente percebemos os espaços vazios, entre as pessoas, entre os móveis. Assim como os espaços entre as falas e pensamentos. Nessa lógica, a própria pausa na música faz a música ser mais bem sentida. Em uma de suas reflexões, Monja Coen afirma que podemos dar mais importância a essas pausas, a esses espaços vazios, ao silêncio; sem ele não há música, não há pensamentos, não há nem mesmo o nada.
O problema da indiferença (ao ruído, às melodias ou mesmo ao próprio silêncio) é não permitir a nossa cabeça, de maneira consciente, filtrar e pensar sobre o que estamos absorvendo. Mas é compreensível: a vida urge na maior parte do tempo e não nos permite pegar nossos caderninhos de desenho para observar atentamente as paisagens sonoras ao nosso redor.
Indirferença musical: possibilidade real ou um blefe blasé?
Já o caso das pessoas que se dizem indiferentes à música é algo a ser seriamente estudado. Gostaria que o neurologista Oliver Sacks estivesse vivo para nos trazer alguma luz sobre esse assunto em mais um de seus incríveis livros sobre o cérebro humano. Segundo David Byrne, frontman do Talking Heads e um estudioso obsessivo do funcionamento da música em seus mais variáveis aspectos, “a música é intangível porque só existe enquanto está sendo assimilada, mas ainda assim é capaz de mudar profundamente a forma como vemos o mundo e o lugar que ocupamos nele”. O grifo é do livro Como Funciona a Música (Editora Amarylis), uma quase bíblia na qual Byrne discorre sobre o poder desse mecanismo que pode nos levar às alturas ou às profundidades da emoção humana.
A insensibilidade musical é algo difícil de imaginar, porque mesmo quando você está fazendo qualquer atividade ordinária na sua rotina e escuta uma música que você detesta, seu humor fica de alguma forma afetado por aquilo.
Composta por três elementos principais – harmonia, melodia e ritmo –, a música é processada pelo cérebro humano através da etapa da percepção, do reconhecimento, e, por fim, da emoção. A neurologia explica que cada etapa dessas é processada por uma região distinta do cérebro e a ciência já provou que há regiões especificamente ligadas com a nossa memória musical e as emoções ligadas a elas.
A insensibilidade musical é algo difícil de imaginar, porque mesmo quando você está fazendo qualquer atividade ordinária na sua rotina – comprando arroz no mercado, sei lá – e escuta uma música que você detesta, seu humor fica de alguma forma afetado por aquilo. Quando está numa festa e toca aquela música chiclete do verão, é impossível sair ileso. Para o bem ou para o mal, a música causa na sua cabeça. Então, será realmente possível se dizer indiferente à música, sabendo que tantos elementos psíquicos são ativados para sua percepção em nossas mentes?
Se a indiferença musical pode ser analisada cientificamente ou não, o que mais me aflige é pensar em como a vida de uma pessoa pode se tornar sem graça e triste ao privar-se de sentir a expressividade de uma música. De um beat. De um concerto. De cantar junto uma letra que você cantou há muito tempo, de rasgar a garganta em um show, de sentir os olhos completamente úmidos ouvindo uma música que lembra alguém, que lembra algum lugar, ou que te lembra de si mesmo, em outros tempos. Como pode ser que algumas pessoas com audições saudáveis não sintam vontade de escutar alguma melodia que as fazem bem, ou que minimamente as fazem sentir… vivas? Só de pensar em não sentir nada, sinto vontade de colocar um disco pra rodar. Morrer deve ser bem silencioso. Então a hora de sentir é agora, já, nesse instante. Ouça bem para sentir em dobro.