“Boa música é muito mais que um bom ritmo e uma letra bonita. A sua história e a forma como você a ouve têm que servir como uma ponte para algo novo. Não novo no sentido de coisa nova, igual essas porcarias que você ouve, mas coisa nova que você nunca descobriria sozinho na sua vida.”
Foram essas palavras ditas pela minha bisavó, uma das maiores críticas musicais que conheci na vida, que soaram junto com a batida de Marcello Gugu enquanto eu descia do Sacomã até a Cursino, voltando do ABC para minha casa. Vovó era a maior crítica musical porque nada satisfazia seu gosto dentro do seu próprio critério de boa música, entretanto, aquele critério serviu para que, no auge dos meus 20 e poucos anos, atravessasse pontes e pontes de um estilo ao outro, sempre encantado com a novidade.
Enquanto “Ipiranga” tocava no meu rádio, sendo trilha sonora dos tiozinhos no boteco e das crianças correndo pela rua no alto trecho da Delamare, o modo aleatório me jogou para a faixa “Gil Scott Heron” (sic), que narrava um poema conciso e coeso com a realidade que eu via ali no semáforo. Não só a ponte que descia para o Ipiranga se materializou na minha frente, como a ponte para a descoberta da real essência de uma das maiores influências do hip hop também se fez. Cheguei na minha casa e fui correndo ouvir Gil Scott por horas, enquanto falecia lentamente na minha cama.
É difícil você avaliar o rap ao redor do mundo sem notar a forte influência e presença da fórmula de Gil Scott-Heron no gênero. Sua mistura perfeita e precisa de jazz, soul e blues com um lirismo magnífico fez do poeta a fonte de inspiração para os rappers geniais e sua escola, que cresceria a partir dos anos 80 tanto nos EUA, quanto no mundo.
Scott-Heron nasceu na Chicago cinquentista, se mudando logo para Nova York, onde começou sua história inigualável de artista. Foi lá que recebeu bolsa para a Fieldston School, no Bronx, graças à sua escrita e onde, anos depois, publicou seu primeiro romance, The Vulture, aos 20 anos. O talento do músico logo o uniu ao seu parceiro Brian Jackson, que deu vida ao Small Talk at 125th and Lenox, que já abria com uma singela e humilde introdução chamada “The Revolution Will Not Be Televised.”
Sua mistura perfeita e precisa de jazz, soul e blues com um lirismo magnífico fez do poeta a fonte de inspiração para os rappers geniais e sua escola.
A faixa, com sua constante percurssão, era violentamente e satiricamente narrada por um recital furioso e tocante de um artista único. Sua construção musical era a essência da poesia discursiva e sua estranheza causada em poucos segundos já dava sinais de que daquele ponto em diante, nenhum trabalho seria realizado sem o peso necessário que Scott-Heron quisesse. Muitos rappers viram na faixa um manifesto e um reason to be ao gênero, mesmo que o próprio Scott-Heron dissesse anos depois que era apenas uma sátira.
Apesar da ironia de que seus maiores sucessos— como o recital “The Revolution Won’t Be Televised” e o álbum Pieces of a Man, de 1971 pela Flying Doctor Records, e marco de sua música – não foram recorde de audiência de massas, mesmo com a mão do produtor Bob Thiele (que trabalhou com lendas do jazz como John Coltrane e Louis Amrstrong); em 1974 gravou com a Arista, de onde manteve um ritmo constante de lançamentos de álbuns.
Após sua morte, artistas de todos os cantos e correntes prestaram homenagens ao músico. Nomes como Talib Kweli, Kanye West, Kendrick Lamar, Jay-Z, Ice Cube e Chuck D se manifestaram em respeito ao poeta e sua obra, que inclusive chegou a ser tocada na derrubada de Honsi Mubarak, ex-ditador do Egito, na Tahir Square.
Apesar de muitas vezes ter deixado a modéstia falar mais alto e não atribuir a si mesmo todo o crédito que levou como progenitor de uma das correntes mais crescentes e constantes na música ocidental, Gil Scott-Heron é um dos mais notáveis artistas da música. E eu, voltado à minha realidade, havia ficado feliz de atravessar uma ponte que me levava a algo novo.
Enquanto pensava naquelas crianças na rua e a vida narrada da periferia nas novas canções de rap, lembrava automaticamente dos pianos sutis e das levadas improvisadas de jazz, tanto nos instrumentais quanto nas letras, que Scott-Heron apresentou ao mundo. Sua importância é tão grande e sua contribuição tão incrível que reproduzi-la apenas nesse espaço, para mim, é quase como um crime.
Mas se minha bisavó estivesse viva, falaria para ela com o maior orgulho que finalmente entendi sua radical e ríspida definição de boa música. E que aquela que acabara de ouvir sem parar era muito acima disso.
Para dizer tchau, fiquem com “I’m New Here”, o último trabalho em vida d’O Poeta.
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