Nos anos 1970, David Bowie estava numa pior. Na verdade, sua carreira estava repleta de grandes sucessos, mas Bowie se sentia perdido: ele estava imerso em uma vida regada por drogas e pela loucura da fama com que circulava em Los Angeles. Em 1976, então, ele resolve então se mudar com sua mulher Angela para Berlim.
Na Alemanha, ele buscava se reencontrar – ou sabe-se lá o que isso quer dizer. Na verdade, Bowie queria retirar-se de cena para reencontrar novamente sua criatividade. Resolveu então ir para uma cidade onde poderia passar por desconhecido e retomar uma certa ideia de normalidade.
À revista Uncut, ele declarou: “por muitos anos, Berlim me atraiu como uma espécie de situação semelhante a um santuário. Era uma das poucas cidades onde eu podia me movimentar no anonimato virtual. Eu estava falindo; lá era barato viver”.
Os anos na Alemanha se tornaram cruciais na sua carreira. Durante este período, ao lado dos parceiros Iggy Pop (que havia se mudado para Berlim junto com o amigo), o músico Brian Eno e o produtor Tony Visconti, David Bowie desenvolveria três grandes obras, que ficariam conhecidas como Trilogia de Berlim: os discos Low (1977), “Heroes” (também de 1977) e Lodger (em 1979).
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Curiosamente, destes três grandes discos, apenas “Heroes” foi totalmente gravado em Berlim. Lançado em 14 de outubro de 1977, o disco ainda hospedou aquela que talvez seja a música mais célebre de David Bowie e uma das mais conhecidas no mundo inteiro: a clássica “Heroes”, uma canção de amor ambientada pela tensão da guerra fria e pela imagem do Muro de Berlim.
Para homenagear os 45 anos do segundo disco da lendária trilogia de David Bowie, conversamos com três grandes especialistas na vida e na obra deste músico lendário: a escritora Gaía Passarelli, autora do livro de Mas Você Vai Sozinha? (Globo Livros, 2016) e da newsletter Tá Todo Mundo Tentando, com passagens na MTV Brasil, no site Buzzfeed e na Folha de S.Paulo, entre outros veículos; o jornalista Marcelo Costa, editor do portal de cultura pop Scream & Yell; e Adriano Cintra, músico multi-instrumentista e produtor musical, que é uma das metades do duo FogoFera, com a cantora Tiê, e já esteve à frente das bandas Thee Butcher’s Orchestra, Cansei de Ser Sexy e Ultrasom, entre outras.
O resultado desta conversa – que fala, além do próprio “Heroes”, do que significa para a música e para cultura pop até hoje o surgimento da trilogia de Berlim – você lê em seguida.
‘Heroes’: uma obra marcada pela redescoberta da sanidade
“Heroes” (escrito com aspas mesmo, para expressar uma certa ironia) foi uma obra composta por vários colaboradores. David Bowie havia lançado no início de 1977 Low – um disco que, como o próprio nome sugere, tem um certo ar sombrio. Ele busca então recobrar sua sanidade, e os ares já estavam um pouco melhores quando Bowie solta, no mesmo ano, uma nova obra, produzida em colaboração com o amigo Iggy Pop, o músico Brian Eno e o produtor Tony Visconti.
Gravado no estúdio Hansa (que era um antigo salão de bailes da Gestapo), localizado bem próximo do Muro de Berlim (tanto que Bowie disse que se inspirou para compor a canção “Heroes” após olhar cotidianamente através de sua janela), o disco que, é composto por 10 músicas bastante distintas, tem uma duração relativamente breve – quase como se os três discos pudessem ser escutados em sequência.
Segundo o próprio Bowie, a ideia com “Heroes” era percorrer uma gama inteira de emoções. Tal qual ocorre em Low, ele traz no segundo disco uma série de faixas instrumentais, trabalhadas de forma vanguardista e revelando a clara influência do grupo Kraftwerk. O disco se iniciou com a produção de “Sons of The Silent Age”, que chegou a ser considerado como possível nome para o álbum.
As colaborações do disco
Um fã que ouvisse os três discos de Berlim após acompanhar os anos de sucesso de David Bowie certamente estranharia a sua mudança de sonoridade. Ele faz uma espécie de transição entre o pop e o rock que marcavam suas músicas até então e parece agora habitar em um outro lugar. Um novo Bowie parecia vir à tona. Em parte, por conta dos parceiros que faziam este mergulho nesta nova fase.
Gaía Passarelli destaca que, por mais que David Bowie fosse o criador principal de todos os seus discos, ele conseguiu desenvolver um trabalho colaborativo em que as participações de seus parceiros eram absorvidas. “Bowie era um filtro. Ele foi brilhante em absorver (às vezes roubar) influências e levá-las para outro lugar. Iggy Pop, Tony Visconti e Brian Eno influenciaram e foram influenciados enormemente pelo Bowie, seja na parceria criativa (não por acaso ele chamou o Visconti para trabalhar junto lá no penúltimo disco) seja na vida pessoal (Iggy, óbvio)”, comenta.
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“Bowie era um filtro. Ele foi brilhante em absorver (às vezes roubar) influências e levá-las para outro lugar”
Gaía Passarelli
Adriano Cintra, que é produtor, afirma que a influência dos colaboradores é muito fácil de ser detectada quando ouvimos “Heroes”. “Pra mim é muito perceptível na captação de som, nas soluções dos arranjos, de toda a atmosfera subjacente. Eu sinto essas personagens quase como instrumentos que foram usados pra tocar as músicas”, pontua.
“Heroes” se apresenta como uma extensão de Low, e apontam a um novo rumo ao que David Bowie pretendia fazer. O artista deixa de lado o rockstar de Ziggy Stardust e entrega o que Marcelo Costa chama de uma trilogia do exílio, que evidencia a sua reinvenção, como se ele estivesse se recriando e planejando seus próximos passos.
“Bob Dylan fez isso com Self Portrait, o Radiohead fez isso com Kid A e Amnesiac, e o Bowie fez isso com Low, Heroes e Lodger, que são discos em que a persona do Brian Eno está muito presente. São discos para se afastar da mídia, para não se engolido por ela. Então, as colaborações são essenciais para esse disco, porque se ele soasse como Bowie soava antes, não surtiria efeito. Ele precisava soar diferente”, afirma Costa.
O impacto da Trilogia de Berlim
Os três discos da trilogia – Low, “Heroes” e Lodger – foram considerados pelo próprio David Bowie como uma virada de chave em sua carreira, e talvez a coisa mais importante que produziu. “Por qualquer motivo, por qualquer confluência de circunstâncias, Tony, Brian e eu criamos uma linguagem de sons poderosa, angustiada, às vezes eufórica”, ele chegou a declarar.
Para Gaía Passarelli, é difícil ver Low e “Heroes” (que inclusive foram lançados no mesmo ano) como obras separadas: “eles são largamente instrumentais, abandonando as influências soul de Young Americans e Station to Station para pirar em kraut rock e ambient, lançados com meses de diferença. Os dois também seguem a mesma fórmula de ter canções mais tradicionais no lado A e experimentalismo artsy no lado B”, pontua.
Adriano Cintra percebe “Heroes” como um disco pesado e denso, o que daria margem para que, na sequência, Lodger soasse bem mais leve. “Parece que ele deu uma expurgada nervosa, começou a experimentar com uns ritmos diferentes, umas coisas mais étnicas. E depois fechou com chave de ouro no Scary Monsters, que, pra mim, é uma continuação dessa fase e ao mesmo tempo um ponto final”, explica.
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O fechamento da trilogia, como Lodger, se destacaria por ser bem mais solar e menos hermético em sua sonoridade. “Ele meio que prepara terreno pra uma retomada pop que começa a acontecer no (ótimo) Scary Monsters e explode no Let’s Dance, lembra Gaía.
‘”Heroes”‘ é o disco mais conciso, porque é o álbum em que o Bowie sabe exatamente o que quer depois de ter experimentado com o Low, que é o disco de rompimento com uma certa maneira de compor música pop”
Marcelo Costa
Já Marcelo Costa aponta “Heroes” como o seu favorito da trilogia. “Para mim, ele é o mais conciso, porque é o álbum em que o Bowie sabe exatamente o que quer depois de ter experimentado com o Low, que é o disco de rompimento com uma certa maneira de compor música pop, algo que Bowie vinha fazendo até o Young Americans. Depois que ele mergulha, ele faz o reconhecimento da área e, á vontade, lança o “Heroes”, que é o disco mais conciso dos três. O Lodger já é o disco de domínio do território, o que permite novas experimentações e a conexão com o futuro”, aponta.
Para os três entrevistados, é inegável que a carreira de Bowie foi transformada após este período passado em Berlim. Gaía explica o contexto por trás das obras: “havia treta com gravadora, um período junkie nos EUA, uma relação ruim com a imprensa inglesa, a necessidade de cortar relações pessoais e profissionais e, claro, a coragem de se reinventar profundamente, algo que permeia toda a carreira dele”.
A trilogia, então, seria um rompimento de Bowie com partes de sua carreira em busca de um novo caminho. Este seria um momento em que o artista finalmente conseguiu o controle sobre suas escolhas profissionais. “Se você não tem controle, você simplesmente vai ser controlado e fazer coisas que você não quer porque alguém que tem controle está mandando você fazer”, aponta Costa. E Gaía relembra: “não por acaso, uma das melhores músicas do Low ganhou o nome de ‘A New Career in a New Town’”.
O sucesso da música “Heroes”
Por fim, uma provocação aos três entrevistados. Será que o sucesso estrondoso da música “Heroes” – que foi continuamente apropriada pelo cinema e pela publicidade – acaba apagando um pouco a importância do disco e até o contexto original da canção?
Marcelo Costa situa a questão dentro do próprio contexto da indústria cultural da qual a obra de David Bowie faz parte. “Quando o artista ‘compartilha’ a sua obra de arte com a indústria cultural ele meio que deixa de ser dono da obra, que passa a ser de todo mundo. É uma característica da indústria cultural de massa, porque os códigos acabam ficando pelo caminho, num mundo cada vez mais permeado por ruídos”, aponta.
O que aconteceu com “Heroes” teria sido semelhante ao que ocorreu com outras músicas, como “Dance Me To The End Of Love”. “Esta é uma canção que nasceu de um texto que Leonard Cohen leu sobre uma orquestra de detentos em um campo de concentração que era obrigada pelos nazistas a tocar enquanto seus colegas prisioneiros marchavam para a câmara de gás. E é uma música que toca em casamentos hoje em dia”, explica Costa.
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Gaía Passarelli destaca que, independente do contexto, esta é uma canção épica sobre o amor, tema que fala a todo mundo que tenha alguma sensibilidade. Ela aponta que os usos da música pelo cinema se relacionam à ideia original, que é falar de amor e superação. “Acho que isso acrescenta significado para novas audiências que podem, inclusive, se apaixonar e querer saber mais sobre a vasta e interessante obra que o Bowie deixou”, acrescenta.
Adriano Cintra lembra que, quanto mais o tempo passa, menos o contexto original de uma música é lembrado. “A música meio que ganha um significado próprio, em dez anos o mundo muda muito e as pessoas, principalmente as que consomem música pop, não têm o costume de contextualizar muito a obra com sua época. Daí acaba virando a música do comercial da Coca-Cola, do filho do Bob Dylan (em referência à gravação feita pela banda The Wallflowers)”.
E será que daria para arriscar uma pergunta difícil: qual é a melhor música do disco “Heroes”? Gaía Passarelli e Marcelo Costa dizem que não dá para fugir da própria “Heroes”. “Não só é uma canção linda e forte, com vocais muito potentes e inspirados, mas é a única desse período que rompe a bolha art-rock e que entrou pra história da música: a apresentação dele em Berlim em 1987 (dois anos antes da queda do muro) é um momento-chave da cultura pop e ‘Heroes’ é, obviamente, um ápice”, aponta Gaía.
Já Adriano Cintra ousa escolher outra. “A melhor música do ‘Heroes’ pra mim é “Joe The Lion”. É muito dramática, as imagens que ela evoca são mais cinematográficas do que muitos filmes que eu já assisti e essa é uma das qualidades do Bowie letrista que me espantam até hoje”, finaliza.
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