Correndo o risco de generalizar um pouco, é possível dizer que a escrita adquire cada vez mais aspectos cênicos. Aquilo que nos idos oitocentistas talvez viesse em páginas descritivas, na ficção moderna sofre a tentação de mimetizar a cena. Seja ela o universo das mentes dos personagens (ao qual temos cada vez menos acesso, diga-se de passagem), seja no discurso e na ação ocorridos.
A culminância disso, para dar um exemplo, pode vir na forma de um conto como o de Ernest Hemingway, “Colinas como elefantes brancos”, em que um casal discute se ela deve ou não fazer uma intervenção médica. Não sabemos nada a respeito do que ele ou ela pensam, apenas conhecemos suas falas direcionadas um ao outro e uma ou outra ação realizada nos 40 minutos que compõem o tempo da narrativa.
Por outro lado, o teatro redescobre a narração a partir de Brecht, abrindo alas para toda uma cena que aprende novamente a contar histórias, com ou sem narrador, mas sobretudo narrando.
Essas considerações nada novas são abordadas por Norman Friedman em “O ponto de vista na ficção – o desenvolvimento de um conceito crítico”, texto publicado pela primeira vez em 1967 – leia o texto na íntegra na Revista USP.
Por outro lado, o teatro redescobre a narração a partir de Brecht, abrindo alas para toda uma cena que aprende novamente a contar histórias, com ou sem narrador, mas sobretudo narrando.
O processo de “teatralização” da escrita caminha paulatinamente desde aquele “autor intruso” que insiste em apresentar cada ação de seus personagens a partir de seu ponto de vista. O melhor exemplo é Tom Jones, de Henry Fielding, em sua insaciável e deliciosa condução de nossa leitura.
Rumo a uma objetivação maior da escrita, o autor cede a voz a um narrador um pouco mais neutro, mas ainda onisciente, perscrutador das mentes e corações de todos os personagens.
Passo maior é dado com a entrada de um narrador-testemunha, que sabe muito dos fatos, porém apenas infere o que se passa no interior dos personagens. É o caso de Nick Carraway em O Grande Gatsby, de F.Scott Fitzgerald.
Aqui o tradutor do artigo, Fábio Fonseca de Melo, aliás responsável pelo bem-vindo didatismo da versão em português, nos lembra o quanto essa testemunha que narra se assemelha aos mensageiros da tragédia grega, quando fazem por exemplo o relato da catástrofe ao fim de Édipo Rei.
Um passo a mais e caímos na seara do narrador-protagonista, aquele que faz a festa contando a história pelo seu ponto de vista. Ele é “limitado por seus próprios pensamentos, sentimentos e percepções”, mas tem a vantagem do poder de discurso. O exemplo trazido por Friedman é Grandes Esperanças, de Dickens.
No caminho da modernidade, a fala é coletivizada para mais vozes, primeiro numa onisciência múltipla, em que se ouve a mente dos personagens, como em Virginia Woolf; depois, limitando-se à mente de apenas um personagem, como faz James Joyce em Retrato do artista quando jovem.
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Essas duas técnicas narrativas são responsáveis, de acordo com Friedman, pelos ”começos abruptos” (abaixo a descrição!!) e “muito da distorção dos contos e romances modernos”.
Já no modernismo é que se percebe o “modo dramático” na ficção, em que [highlight color=”yellow”]“as informações disponíveis ao leitor limitam-se em grande parte ao que os personagens fazem e falam”[/highlight]. E mais, o autor nos dá como que direções de cena ao prover a aparência de alguém ou o cenário em que a ação ou diálogo ocorre. E haja diálogo, como vemos em Colinas como elefantes brancos. Temos quase só falas diretas entre os personagens.
E daí?
Você pode estar pensando. E daí que faço apenas mais um comentário. Textos contemporâneos como o de Luci Collin, nossa mais nova imortal e uma das vencedoras do Jabuti deste ano em Poesia (por A Palavra Algo), parecem prontos para a cena, como que sem requerer adaptação. Aconteceu com fragmentos de seu A árvore todas, transpostos na encenação \todas/ otimamente.
Outra característica forte ultimamente são monólogos, escritos ou não para a cena.
Eis uma descoberta, ao menos para mim: tudo pode ser matéria para teatro.