
Olhos negros de absinto e brasa encaram a humanidade. Atordoado e preso em um futuro incerto, o par de olhos mira a lisa garganta da burguesia abjeta. Jarry tem olhos de curandeiro, daqueles que incendeiam a alma de crianças indefesas e as transformam em caliginosos anjos no exílio. Há um sorriso disforme no ventre oco de uma santa barroca.
A gargalhada ecoa pelos poros laceados da matriarca morta de infâmia. É impossível conter o riso nervoso que se alastra pela quentura do corpo colocado em xeque.
Estraçalhados, voltamos a mirar aqueles olhos negros que detém toda a ousadia que carrega nos seios férteis os melhores pecados. Olhos negros de absinto e brasa escancaram a humanidade e nós, precocemente decrépitos, nunca mais seremos os mesmos.
Alfred Jarry, poeta e dramaturgo francês, é desses homens que tornaram-se imortais por conta de sua genialidade e, principalmente, de sua inquietação. Artista de alma iconoclasta, Jarry abalou as estruturas das letras e dos palcos franceses com seu humor ácido e violento.
Nascido na cidade de Laval, em 08 de Setembro de 1873, o segundo filho do casal Jarry, batizado Alfred Henri Jarry, é talvez o grande precursor de algumas das vanguardas mais significativas do século XX, entre elas o Dadaísmo e o Surrealismo.
Considerado por muitos como um artista simbolista, Alfred manteve-se fiel a si mesmo durante a sua breve vida, o que o aparta dos princípios, e muitas vezes do ceticismo, de qualquer movimento artístico, inclusive o Simbolista.
É notório que a partir de 1891, época em que era estudante do Liceu Henri IV, o poeta passa a conviver intensamente com artistas e intelectuais franceses, dentre os quais a semente Simbolista mostrava-se a mais fecunda.
No entanto, a impossibilidade de catalogar ou etiquetar as obras do dramaturgo francês, sabemos que é impossível enquadrar o delírio, demonstra que o único compromisso de Alfred Jarry era o escândalo, e foi através dele que o francês nos encantou com toda a sua genialidade.
De vida curta e obra extensa, o precursor do Teatro do Absurdo serviu de inspiração para artistas que, como ele, levaram às últimas consequências o ardor e miséria de fundir arte e vida. Não é incomum ler citações à Jarry em escritos de André Breton, Eugéne Ionesco, Man Ray, Roger Vitrac e Antonin Artaud; Artaud e Vitrac, inclusive, fundaram, em 1927, o Théatre Alfred Jarry, em homenagem ao escritor.
Transitando entre teatro, poesia, romance, pintura e até música, Alfred nunca se dedicou exclusivamente a nenhuma dessas frentes, o que diz muito sobre seu espírito inquieto. Além de tudo isso, o autor ainda é criador da Patafísica, que é a ciência das soluções imaginárias.
Em 1948, foi fundado o Collège de Pataphysique, dedicado a divulgar e estudar essa ciência, bem como a obra de seu criador. Apesar de sua extensa contribuição para as artes em diferentes cantos, Jarry tornou-se mundialmente conhecido através do teatro. Ubu Roi (Ubu Rei, em português) é considerada uma das obras mais enigmáticas e importantes do teatro moderno.

Ubu Rei é a primeira peça da trilogia que conta a história de Pai Ubu, as outras duas são Ubu Chifrudo e Ubu Acorrentado. Pai Ubu é a representação caricata de um odiado professor de física, Félix Frédéric Hérbert, que lecionava no Liceu de Rennes, onde o autor estudou em 1888.
Essa de brincadeira de alunos, que escreviam pequenos roteiros para ridicularizar o magistrado, é a base para a peça que Alfred Jarry organizaria anos depois. Pai Ubu representa o que há de pior na humanidade: ganância, crueldade, egoísmo, covardia e, principalmente, estupidez. Em sua sede de poder, guiado pelos caprichos de sua esposa, Ubu instaura uma ditadura através de atos odiosos.
Corrupto e violento, Pai Ubu torna-se um anarquista ensandecido pelas escolhas e assombrado por fantasmas, alguns de carne e osso. Em um misto de paródia, sátira e farsa, tudo apoiado em um humor grotesco, o dramaturgo afronta a sociedade através dos olhos deturpados do protagonista, um tirano que personifica toda a baixeza humana.
Essa de brincadeira de alunos, que escreviam pequenos roteiros para ridicularizar o magistrado, é a base para a peça que Alfred Jarry organizaria anos depois.
O dramaturgo ainda utilizou-se de uma técnica de justaposição, ou colagens, para dar mais liberdade ao texto, o que agradaria futuramente diversas vanguardas artísticas que enxergaram nessa estética uma ruptura com a dramaturgia convencional. A peça foi encenada em Dezembro de 1896 pelo Théâtre l’Oeuvre de Paris e causou um enorme escândalo. Ao entrar em cena, Ubu, representado pelo ator Firmim Gémier, assolou o público presente ao entonar sua primeira fala: “Merdre” (merdra).
Após a fala, o teatro se emudeceu por quinze minutos. O ato, na tentativa de controlar o espanto do público, se pôs a dançar freneticamente até cair no palco, gerando uma gargalhada geral seguida de insultos e gritaria por parte do incomodado público.
Ali morria, temporariamente, a carreira da peça, no entanto, surgia um dos maiores nomes do teatro mundial. No Brasil, a montagem comandada por Cacá Rosset e seu grupo Ornitorrinco é celebrada como um marco de nossos palcos.
Em uma época dominada por fachistinhas juvenis, que enxergam no ignóbil Danilo Gentilli um herói da pátria e que, tal qual a besta quadrada do stand up, justificam sua estupidez através da liberdade do humor, é preciso trazer à cena a figura transgressora de Alfred Jarry que, de maneira revolucionária, se utilizou do riso enquanto violência poética para ofender e esclarecer uma sociedade odiosa.
Os olhos negros de absinto e brasa de Jarry continuam nos guiando diante dos absurdos dessa vida mal resolvida e, diante deles, só podemos ter a certeza de que os canalhas continuarão sendo afrontados através de nossa gargalhada anárquica. Tremei!
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