Quem não conhece Pompeia não sabe o que está perdendo. A frase pode parecer slogan de publicidade turística, admito, mais é a mais pura verdade. Só quem já passeou pelas praças do bairro numa tarde qualquer, já bebeu despretensiosamente no Pé pra Fora e no Tiro Liro ou já se perdeu pelas belezas da Feira das Artes sabe do que se trata esse pedaço de São Paulo. A antiga vila operária guarda sua história em cada canto do bairro, basta ter olhos de ver, e foi logo ali, no Sesc Pompeia, na última semana, que aconteceu um capítulo de peso da história do teatro brasileiro: a estreia de Roda Viva.
A peça, escrita em 1967 por Chico Buarque e encenada no ano posterior por José Celso Martinez Corrêa, ganhou nova direção e releitura do lendário diretor do Teatro Oficina, 50 anos após a sua estreia no Teatro Princesa Isabel, no Rio, e faz parte das comemorações dos 60 anos do grupo.
Se o simples reencontro desses dois gênios brasileiros, Chico e Zé, já seria motivo para considerar o acontecimento algo absolutamente imperdível, existem outros fatores, além das figuras centrais da obra, que fazem com que as três apresentações ocorridas no Sesc fiquem marcadas eternamente na história do teatro tupiniquim. Quem esteve no teatro para prestigiar a peça do Oficina esteve diante de um acontecimento único, e para compreender a grandiosidade da coisa é preciso retornar à primeira montagem, em 1968.
O ano que não terminou
Na história recente da humanidade, inundada por acontecimentos gotejantes dia a dia, poucos períodos são tão memoráveis quanto o ano de 1968. Naqueles 12 meses, o mundo viveu um turbilhão, um maremoto de acontecimentos que de alguma maneira ajudaram a definir, ao menos por essas bandas ocidentais, o presente que vivemos, seja para bem ou para mal. Assassinatos, massacres, golpes de Estado, revoltas, revoluções, efervescência cultural, mudança comportamental e pedra na vidraça. 68 foi um ano de combate.
Se a primeira coisa que nos vem à memória quando falamos a respeito do período são os estudantes parisienses unidos aos trabalhadores nas ruas, exigindo, debaixo de porrada com pedras nas mãos, direito tanto ao pão quanto ao sonho e tatuando a luta pela liberdade no peito de 68, é preciso lembrar que essa batalha custou, tanto lá quanto cá, a vida de homens e mulheres que deram seu corpo e sua existência à causa, afinal, a luta pela libertação desconhece fronteiras geográficas e a musa multicor de Rimbaud abre as asas sobre todos os seres do globo, impossibilitando definições e limitações a respeito de seus soldados.
Enquanto os Beatles cantavam a sua revolução, sem imaginar que anos mais tarde Trump se apropriaria da canção, e os Stones lançavam a endemoniada “Simpathy for the devil”, o mundo chorava o assassinato de Martin Luther King e o massacre comandado pelos Estados Unidos no Vietnã. O tempo era de tempestade, violência e libertação. Por aqui, no Brasilzão, a coisa não era diferente. Enquanto Costa e Silva queimava livros e revistas em nome de uma moral completamente imoral, o assassinato do estudante Edson Luís unia artistas, estudantes e grande parte da população contra o regime militar. Fizemos a famosa marcha dos cem mil. A tropicália engatinhava, mas chegava com tudo, de saia e maquiagem, numa mescla de música e performance que fundiu a cuca dos críticos musicais brasileiro.
Era, vejam só, tempo de florescer, mesmo que os poderosos tentassem conter a vida com seu impulso de morte. Nesse contexto, que ficaria pior com a elaboração do Ato Institucional Número Cinco (AI-5) em Dezembro, um jovem músico de 24 anos escreveu sua primeira peça de teatro depois de assistir ao espetáculo O Rei da Vela, do Teatro Oficina. O jovem era Chico Buarque, que com a peça em mãos procurou o diretor do espetáculo, Zé Celso, para que juntos levassem a sua primeira obra teatral ao palco.
A peça
Roda Viva conta a construção, leia-se fabricação, ascensão e queda de um ídolo: Benedito da Silva. Alçado à fama com a ajuda de um anjo da guarda, uma espécie de empresário abusivo que cobra 20% de tudo para realizar o serviço, o cantor é rebatizado como Ben Silver. O nome americanizado é apenas uma das concessões que Benedito faz para alcançar o sucesso. A partir daí, do reconhecimento nacional, a peça denuncia os bastidores do show business de maneira precisa.
O Capeta, um antigo amigo do anjo, passa a chantagear o novo ídolo exigindo dinheiro para que não suje a sua imagem diante do público e até mesmo Juliana, mulher de Ben, que de início é contra o plano e odeia o anjo, entra no jogo e se deixa escorrer pro ralo junto a sujeirada. A máquina da indústria cultural não dá tempo pra descanso e, aos poucos, vai devorando o cantor. De Ben Silver passa a Benedito Lampião, um músico cangaceiro, até que a morte lhe encontre indefeso na dentuça dessa indústria insaciável.
É impossível não pensar que o texto é baseado na experiência do próprio autor. Quando escreveu Roda Viva, o jovem Chico Buarque, aos 24 anos, havia provado há pouco o doce fruto do sucesso e percebeu que o reconhecimento vinha acompanhado por jogos de interesse, relações comerciais absurdas e pelo fantasma da tão temida indústria cultural de massas. A obra de Chico mostra muito bem que essa estrutura se mantém através da exploração, criação e assassinato de novos ídolos. Um sistema que resiste através do consumo precisa tanto de novos fetos quanto de novos cadáveres para se manter vivo.
A montagem de 68
A primeira versão de Roda Viva estreou no teatro Princesa Isabel, na cidade do Rio de Janeiro, no dia 15 de Janeiro de 1968, com produção de Chico Buarque, cenários e figurinos de Flávio Império e direção de Zé Celso. Os ensaios foram rápidos, aproximadamente três semanas, e a montagem trazia uma novidade surpreendente: o coro. Formado por 13 atores e liderado pelo diretor de cena, Johnny, o coro de Roda Viva talvez seja o grande responsável não só por uma transformação no teatro brasileiro, como também pelas polêmicas que cercam a peça até hoje.
Segundo o próprio diretor, o coro trazia o teatro de volta aos seus primórdios, bebendo na fonte dos ritos, dos gregos aos indígenas, e foi um escândalo generalizado. Gritos, uivos, afronta à plateia e à realidade brasileira; o coro dominou a cena trazendo pulsão à encenação e uma espécie de atuação selvagem e violenta, necessárias para tirar o expectador de sua passividade engravatada em voga nas grandes salas. É um aprofundamento da revolução que o Oficina tinha começado com O Rei da Vela.
O cenário de Flávio explorava a religiosidade, brincando com a construção dos mitos e trazia imagens e símbolos diversos, muitos deles de religiões africanas. O barulho foi tão grande quanto a genialidade e não faltaram acusações: imoral, pornográfico, louco, perigoso, criminoso. Zé e seu coro foram acusados de “destruir Chico Buarque”, no que foram prontamente defendidos pelo autor. Findada a temporada problemática no Rio, o gruo partiu pra São Paulo, e por lá as coisas pioraram. No dia 18 de Julho, cerca de 20 integrantes do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), grupo paramilitar ligado ao governo, invadiram o teatro destruindo cenários, figurinos e espancando os atores. Algum tempo depois, em Porto Alegre, outra confusão no dia 03 de Outubro. Dessa vez, a tragédia parecia anunciada.
A obra de Chico mostra muito bem que essa estrutura se mantém através da exploração, criação e assassinato de novos ídolos.
Na entrada do teatro havia uma manifestação contra a pornografia da peça, com distribuição de panfletos e gritos de ordem. Após a apresentação, um grupo de atores foi brutalmente agredido no hotel. O ataque, segundo testemunhas, foi protagonizado pelo III Exército de Porto Alegre. Diante do ocorrido, os atores decidiram que não retornariam para o hotel, e sim pra São Paulo. Durante a fuga, a atriz Elisabeth Gasper e o músico Zelão foram capturados, torturados de diversas maneiras, incluindo uma tentativa de estupro, e liberados com condição de sair da cidade até o meio-dia. Além disso, no dia seguinte, o Teatro Leopoldina amanheceu com diversas pichações como “fora comunistas”, “arte sim, pornografia não”, “chega de subversão” e outras frases prontas que só servem a essa gente que não pensa.
Roda Viva 2018
Uma década depois de sua estreia e de toda a confusão causada pela ousadia da montagem, o Teatro Oficina, agora Uzyna Uzona, volta a encenar Roda Viva. Apesar da data comemorativa, a vontade de remontar a peça assombra Zé Celso há anos e o encenador só não realizou o projeto antes porque o autor, Chico Buarque, havia proibido qualquer apresentação da obra por considerá-la fraca se comparada a outras peças de sua autoria, como A gota d’água ou A ópera do Malandro.
Graças aos deuses, todos eles, o compositor voltou atrás e permitiu que o grupo encarasse a empreitada. A produção, como toda produção cultural no Brasil, teve grandes problemas. A grana não saía de canto nenhum e a produção, caríssima, estimada em R$ 800 mil, não decolava até que recebeu apoio do Sesc e do Itaú Cultural. É fácil compreender a extensão da cifra, afinal, ao todo são mais de 60 profissionais envolvidos, entre atores, músicos e técnicos, além de figurino, cenário, material de divulgação e toda a parafernália que compõe um espetáculo.
Como era de se esperar, a peça foi totalmente repensada, respeitando o texto mas colocando-o diante da sociedade e do país atual. Zé Celso é um encenador inquieto que dialoga com seu tempo, e os problemas de seu tempo, por isso a nova montagem de Roda Viva está cheia de novidades. Se na primeira versão a crítica à industrial cultural tinha como alvo a febre da televisão, agora são as redes sociais que fazem esse papel. Ben Silver faz, por exemplo, uma live no telão, com bordas de telefone celular, com a bandeira do Brasil ao fundo e um discurso vazio, burro, digno de qualquer imbecil raivoso com o qual estamos acostumados.
Não faltam, também, alusões ao presidente recém-eleito Jair Bolsonaro. Sua campanha criminosa, baseada em fake news e disparos milionários no WhatsApp, está ali, como também estão diversas imitações do risível e despreparado governante. O coro continua eletrificado e dessa vez em número maior, com 20 atores engrossando seu discurso. Ao fim da peça, toca-se a musica “Cordão”, de Chico Buarque, que entoa os versos “ninguém vai me segurar, ninguém há de me fechar as portas do coração, ninguém vai me sujeitar a trancar no peito a minha paixão”.
“Roda viva”. São duas palavras apenas as deste título, coisa simples. Talvez, mundo a fora, elas pouco digam, não passem de uma tentativa de expressão tropicada, semi-morta e relegada ao famoso desuso. Talvez elas não sejam absolutamente nada e o simples fato de as juntarmos assombre e retorça os ouvidos gringos, vai saber. Isso mundo a fora, isso por aí. Por aqui, bravas terras tupiniquins, a coisa é diferente e só de ouvir estalar nos tímpanos o tilintar da “roda viva” já sentimos na espinha o peso da obra-prima de Chico Buarque. É só ouvir “Roda Viva” pra sentir chegar de mansinho na memória em sequência tudo aquilo de novo: as notas secas no violão, o passeio vocal do MPB-4 e a inconfundível voz de Chico trazendo o dia. “Pa pa pa”.
A montagem de Roda Viva é mais do que uma celebração. O novo trabalho do Teatro Oficina é delicado e potente, e torna-se imprescindível diante do país e do mundo que habitamos. Nunca estivemos tão perto de 1968, é verdade, mas ao mesmo tempo nunca estivemos tão longe. Se por um lado convivemos novamente com a “paranoia comunista” e somos violentados a todo momento por uma horda acéfala que grita e violenta mulheres, artistas, professores e todo tipo de minoria, é absurdo pensar que existe realmente uma resistência pronta para tomar as ruas em defesa da liberdade.
Encontramo-nos diante do furacão e estamos passivos, infelizmente. Diante de tanto horror, como os que vivemos nos últimos meses, e dessa nação estraçalhada que agoniza no horizonte, Zé Celso, Chico Buarque e a trupe do Teatro Oficina nos dão, através dessa obra, a possibilidade de ao menos sonharmos novamente, e a certeza de que por mais que eles tentem nunca vão nos calar a voz e o peito, com diz a canção que encerra o rito teatral.