Shakespeare na rua, não tem lugar melhor. Ao contrário de algum pensamento elitizante que o remeta a teatrões, é em meio ao povo que ele está em seu elemento, popular como eram as sessões elizabetanas na entrada do século 17.
Em plena Boca Maldita de Curitiba, o grupo gaúcho Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz trouxe Caliban – A Tempestade de Augusto Boal, versão d’A Tempestade shakespeariana com estruturas de metal, bonecos de Olinda e malabarismo com fogo, ou seja, atrativos dignos da magia da última peça do bardo.
Logo de início nos deparamos com uma eficiente chamada para o público: atores balançando com olhar no horizonte sobre uma carcaça metálica que simula um barco. Com rodas, essa estrutura serve ao espetáculo do começo ao fim, guiando a trupe e os espectadores em sua movimentação (no caso de Curitiba, pelo Calçadão da Rua XV).

Ao longo da apresentação, ela serve de cama, palco de show, esconderijo e púlpito para Próspero, o protagonista. Mas é uma pena que personagem tão cheio de nuances – interpretado por John Gielgud em Os livros de Próspero, de Peter Greenaway – aqui seja apenas maldoso. Um malvado senhor de engenho.
Assim como no filme, a magia da peça dá vazão a cores secretas, surpresas misteriosas, nas ruas o grupo gaúcho traz uma abundância de referências à cultura brasileira.
Assim como no filme, a magia da peça dá vazão a cores secretas, surpresas misteriosas, nas ruas o grupo gaúcho traz uma abundância de referências à cultura brasileira, em quadros que surpreendem cada vez mais entre figurino, adereços e atuação. Os integrantes se revezam. Quando alguns saem da roda de apresentação, voltam minutos depois em nova roupagem, como se participassem das magias descritas n’A Tempestade para ressurgir.
No texto de Shakespeare, as descobertas marítimas e o encontro com outros povos ao redor do globo são sementes para a imaginação do autor, numa ilha para onde um nobre italiano traído pelo irmão foge com a filha. Próspero e Miranda estabelecem ali uma tirania baseada no poder mágico dos livros que ele detém. Magia contraposta à da bruxa Sicorax, original da ilha e agora presa pelo europeu. Assim como seu filho Caliban, o “primitivo” escravizado por Próspero.
Na releitura de Augusto Boal, criada em 1974 no exílio argentino, essas críticas que Shakespeare deixou no ar intuitivamente, em meio a uma trama em que coexistem outras facetas dos personagens, explodem em conteúdo anticolonialista. Assim o fizeram diversos outros autores fora do eixo dos países ricos, adaptando esse enredo que é um prato cheio contra a opressão e um grito pela liberdade.
Há que se constatar que, na monumental montagem gaúcha, as outras facetas dos personagens, a discussão sobre liberdade e manipulação que se estabelece entre Próspero, Caliban e Ariel, um ser mágico também escravizado, são terraplanadas para melhor erigir o edifício da luta operária. Empregado versus patrão, algo que é trazido em canções do grupo, situadas pontualmente na narrativa de rua de forma a embalar a plateia.
A Tempestade é perfeita para discutir o pós-colonialismo, mas me parece que uma montagem, por mais hábil e teatral que seja, perde ao colocar a palavra “colonialismo” ipsis litteris em cena e gritar palavras de ordem.