“Subitamente a obra do artista gigantesco, impressionante, leproso, quase cego, as mãos mutiladas, obriga o viajante a parar na estrada e a reconhecer Deus nesse trabalho. E obriga Deus a ser um pouco mais humilde diante do ser humano”.
Millôr Fernandes, no filme Últimos diálogos (1993)
Algumas vezes um tema reina na cabeça. Gruda feito chiclete, com o perdão da obviedade, e não “solta” nem a fórceps. Chacoalha a cuca em sua reinação incessante. É feito folia que bate em forma de doença; judia. E toma tudo pra si, feito redemoinho em rio selvagem. Algumas vezes, nem sempre, um tema reina na cabeça.
Talvez por conta disso, ou pelo exercício do delírio, Luzia bateu feito fantasma nos meus cílios, invadindo um desses sonhos esquisitos que nos despertam pela madrugada. Era domingo, o último passado no calendário, e lá fora o frio batia o seu gelo em forma de vento contra a silhueta de concreto do prédio ao lado. A ventania assoviava insistentemente e Luzia me acordava, sorrindo, de um sonho febril. Dividimos um cigarro na imensidão da janela que dá pro mundo todo, e ali, entre um trago e outro, ela me contou a sua história.
A atriz de riso fácil em nada lembra o artista amputado amarrado com sua espátula. Nada! Luzia alumia todo o ambiente noturno com a luz saída de seus lábios. Comparo-a, na verdade, com as obras do anjo barroco de Ouro Preto. Como elas, Luzia impressiona, e também de alguma maneira nos aproxima de Deus. A menina desliza sobre rodas, com as pernas fixas e o coração galopante no peito. Conta que desde cedo tem a mania besta de ficar remexendo suas partes inferiores, não na esperança de que respondam ao gesto, mas na certeza de que apesar de dorminhocas as pernas mantem-se firmes diante da vida. Mesmo sentada, a garota reina no altar de seu palco. Luzia briga desde pequena com as raízes que a prendem, mas o tempo a ensinou que é possível colorir as impossibilidades de modo que desde sempre Luzia fez-se livres das correntes que insistem em dizer não. Ela sempre foi torrente, remando na contramão do rio da gente.
O Centro, explica-me Luzia, tem um método próprio de criação: o Teatro Brut. O Teatro Brut trata, a grosso modo, da própria essência do teatro. Não prescinde de palavras, mas de gestos, e permite que todos façam parte da ação.
“Teatro, dança e música dentro de uma perspectiva inclusiva”, esse é o lema e a luta da guria. Esse também é o “slogan” do Centro Inclusivo de Artes Múltiples, o CIAM, que tem duas sedes na Argentina e três na Espanha. O Centro, explica-me Luzia, tem um método próprio de criação: o Teatro Brut. O Teatro Brut trata, a grosso modo, da própria essência do teatro. Não prescinde de palavras, mas de gestos, e permite que todos façam parte da ação.
Ancorada nos revolucionários ombros de Jean Dubuffet, o francês que considera o Ministro da Cultura como a polícia da Cultura, a tal Art Brut é definida como “uma obra executada por pessoas alheias à cultura artística, para as quais o mimetismo, contrariamente ao que ocorre com os intelectuais, desempenha um papel menor, de modo que seus autores tiram tudo (temas, escolha de materiais, meios de transposição, ritmo, modos de escrita etc.) de suas próprias fontes e não dos decalques da arte clássica ou da arte da moda. Assistimos à operação pura, bruta, reinventada em todas as fases por seu autor, a partir exclusivamente de seus próprios impulsos”.
Como Dubuffet, Luzia também se sente excluída. Como Manun Medina, se recusa a aquietar o próprio espírito, por isso visita sonhos inconstantes em noites vazias. Conta-me a menina que aqui, no Brasil, a tarefa inclusiva do teatro tem sido uma árdua luta contra o descaso. A ela ainda é possível o trabalho, mas a garota insiste que a luta da tal representatividade não pode conhecer limites. É preciso, e eu concordo com seu sorriso límpido, pensar que seus colegas surdos, mudos, amputados e invisíveis também têm direito ao tablado, como tantos outros fantasmas latinos encontraram, no CIAM, o sonho e os holofotes sonhados. A levada moça reina e enquanto estraçalha toda a louça de certezas que reina no quarto.
Concordo com ela, corroborando o fato. Conto à garota que, como homem de teatro, nunca pensei a respeito e, decididamente, me desculpo. Ela, pra variar, sorri. Diz-me, entre os feixes de luz que escapam de seus lábios, que tudo ainda é possível, como é possível mais um cigarro diante do mundo antes de seu adeus. Dessa vez, fumamos em silêncio.
Luzia se despede com um aperto no rosto e no meu cangote. Carrega, em seu sorriso, a certeza do todo poderoso em seu destino. Eu, pra varia, choro. E sigo a ópera dos sonhos imóvel, preso no meu canto. Olho pro breu da noite, deito os cílios em sinal de abandono e encontro Morfeu. Lá fora, o vento volta ao seu duelo contra o prédio, a folia adoece novamente meus pensamentos e nós dois, eu e Luzia, sentimos, no lenço da chuva fina, o peso infinito da humildade de Deus.