Não é de hoje que as tais “situações políticas” viram temas de debates e de espetáculos, misturam-se à rotina de cidadãos e artistas e acabam representadas no palco. Tão pouco é novidade na existência do brasileiro, ou do filho de qualquer outra nação, ter de caminhar no meio-fio do abismo por contas das incertezas e inconstâncias da valsa dos poderes que empurra a humanidade em direção ao infinito do nada.
Arte e política são indissociáveis como o sopro do vento e a vida, e por mais que alguns insistiam em colocá-las em lados opostos, a inércia imposta pela rotina e os abusos que a realidade promove tratam logo de uni-las novamente. Goste-se ou não, toda manifestação artística é também uma manifestação política.
Tal afirmação só é possível se compreendermos logo de saída que não é preciso explicitar um tema para tocá-lo. Não é necessário transformar o palco em palanque para tratar de política, apesar da prática mostrar-se ainda comum e eficaz, prova disso são as diversas obras que sofreram, e ainda sofrem, censura, ou que provocaram, e ainda provocam, reações extremas por parte de sociedade, poderes e líderes sem tratar abertamente do troço.
Ao tocar a vida, a arte já se propõe a fazê-lo por inteiro, ficando impossível medir o alcance do dedo que, portanto, resvala em todas as chagas humanas. Seja através do riso ou do pranto, do engajamento ou da negação, da realidade ou do sonho. Ao retratar o homem e a sociedade em que vive, e sua organização dentro dessa sociedade/vida, a arte, dentre elas o teatro, não pode se abster diante de nenhum aspecto inerente a esse homem. Afinal, ele está logo ali, envolvido em todas as fases do processo, escondido em todos os cantos do globo. Esse homem, animal político, é também o próprio teatro: está no palco, na técnica, na contrarregragem e na plateia.
Além da impossibilidade de se escapar da questão política envolvida em qualquer espetáculo, independente da pretensão, existem momentos históricos em que é preciso, tanto aos artistas quanto aos cidadãos, se posicionar de maneira clara. Quando nos encontramos diante do breu da ignorância, não existe meio termo ou lugar seguro. Nessas ocasiões a arte tem um papel fundamental: o da resistência. Não é possível ao artistas se omitir quando o que está em jogo é a própria liberdade, pilar fundamental e condição inegociável a todo processo artístico.
Goste-se ou não, toda manifestação artística é também uma manifestação política.
Em terras tupiniquins, por exemplo, grupos como o Teatro de Arena driblaram a censura reinventado o teatro musical e o teatro de revista para tornar questões políticas “acessíveis ao povo”. Inspirados pelos musicais épicos e políticos de Bertolt Brecht, Augusto Boal e Guarnieri abrasileiraram a revolta do alemão, no melhor estilo antropofágico, e transformaram a arena cravada no centro de São Paulo num manifesto político feito de cimento e coragem. Na mesma época, Chico Buarque, também de maneira antropófaga, lançava a Opera do Malandro e a Gota D’água, tratando dos mesmos temas de maneira mais poética e menos panfletária.
De Plínio Marcos ao Teatro Oficina, de Bibi Ferreira à Companhia do Latão; são inúmeros os exemplos de artistas que se posicionaram, e continuam se posicionando, diante do abismo e do medo.Agora não é diferente. Não faltam exemplos, e por certo nunca faltarão, independente do cenário, de resistência artística e teatral através do tempo no Brasil e no mundo.
Na América excludente e delirante do bufão Donald Trump, que trancafia crianças e ameaça imigrantes, por exemplo, o teatro dita o volume do coro. Um dos indícios mais significativos dessa guinada à discussão política é a Broadway, que passa por um momento novo: há tempos não se via tanta peça com conteúdo político estampando os cartazes e os outdoors da avenida mais famosa dos U.S.A. Os especialistas acreditam que a razão seja justamente as declarações, ações e crimes praticados a céu aberto pelo governante desgovernado.
Em apenas uma quadra, é possível encontrar espetáculos com temáticas raciais, em defesa dos direitos dos homossexuais ou sobre a ganância que se espalha feito peste no submundo do poder. Mais adiante, no circuito off Broadway, um espetáculo sobre o poder das fake news, que tanto lá como cá tomou de assalto o pleito através da preguiça intelectual, faz dobrar a esquina a fila de espectadores. Ao lado, um ator anuncia que “o ser humano do século XXI renunciou a privacidade”, é o início de uma peça que discute a questão da venda de dados pessoais por redes sociais.
No velho continente a coisa não é diferente. A França vive uma enxurrada de peças que tratam do mesmo tema: justiça. A terra de Emmanuel Macron se vê, com razão, refém das injustiças defendidas por um governante comandado por grandes corporações. Lá, como cá, direitos são leiloados em nome do mercado e os trabalhadores continuam a mercê das vontades de homens comprometidos com o retrocesso e a opressão.
Por aqui o enredo é o mesmo, portanto, a necessidade de se posicionar também é a mesma. No Brasil, o fascismo deixou de ser apenas uma ameaça e caminha pelas ruas a luz do dia com a cara limpa, as mãos sujas de sangue e representante no segundo turno das eleições presidenciais. Coronéis empoeirados e garotos mimados intimidam instituições com uma naturalidade que chegaria a corar o próprio Marques de Sade. Por aqui, nada vai bem.
O Ministério da Cultura segue ameaçado, grupelhos tentam a todo custo fechar exposições e criminalizar artistas e parece que foi baixado um decreto decrépito que nos proíbe de pensar. Grita-se histérica e irracionalmente em nome de uma moral completamente imoral e enviesada. Defende-se uma família que já não existe mais, mas que da sala de jantar insiste em defender seus interesses em detrimento da humanidade e do bom senso. Por aqui, resta o coro dos artistas, a defesa do justo através da arte e isso basta. A beleza sempre avança contra a barbárie em tempos de guerra.
Não existe luz capaz de alumiar o fundo do abismo. Seu bucho inexplorado, ventre oco, é o desconhecido em forma de perambeira. É o vento do fim do mundo penteado nossos cabelos. Seu horizonte infinito, imensa gaiola de eco e estrelas, nos lembra a todo momento de nossa própria pequenez. Estamos nos trucidando à beira do precipício e seguimos com o cortejo da falta de razão. Nesse momento, não podemos nos omitir enquanto artistas, cidadãos e até como seres humanos, afinal, diante do horror a omissão torna-se complacência.
Em nome da liberdade, da democracia e principalmente da cultura, é preciso que os artistas se unam em defesa da justiça e da empatia. Se assim for, tenho a certeza de que eles não nos calarão, seja na base da bala ou da proibição. Juntos continuaremos gritando, cantando, atuando, escrevendo, dançando e criando; pois o que nos une é o amor e a coragem e não a covardia e o ódio. Não nos curvaremos à censura, à surra ou ao fantasma do eletrochoque, temos fé no outro e sabemos que ao invés de distribuir fuzis é preciso dinamitar fronteiras, construir pontes de acesso.
Estamos hoje dialogando à beira de um precipício com os corpos expostos, contra o vento, mas podemos deter o avanço do medo. Basta a vontade de resistir, a certeza daquilo que defendemos e a crença na força para seguir adiante. Por aqui, apesar do vendaval, ainda é tempo de mudar o rumo do vento. Temos sangue correndo nas veias e furacão nascendo nos lábios. Ainda há tempo. Estamos juntos, hoje e sempre. Vamos barrar o retrocesso?