No palco do Teatro Paiol, a atmosfera era de expectativa na noite de quinta-feira. O espaço estava lotado, e os olhares atentos aguardavam o início do solo teatral Manifesto Transpofágico, estrelado pela travesti Renata Carvalho, também responsável pela dramaturgia. Sob a direção de Luiz Fernando Marques, conhecido como Lubi, o monólogo prometia uma experiência única e desconcertante. E foi.
A peça, em cartaz na Mostra Lucia Camargo do Festival de Curitiba, se desenrola sem a presença de personagens definidos. Entre momentos íntimos compartilhados e relatos históricos sobre a travestilidade, Renata navega entre sua própria jornada e sua “transcestralidade”. Seu corpo, exposto de maneira performática e em sintonia com as escolhas estéticas da obra, ora acompanha a narrativa, ora a desafia, em constante tensão.
A luz desempenha no espetáculo papel fundamental na interação com o corpo de Carvalho, que, segundo ela mesma diz, sempre se faz presente antes dela. “Chega antes de mim.” Os recortes, entre contraplanos e focos laterais, escondem por um tempo prolongado o rosto da performer, destacando a constante desconstrução e reconstrução da identidade travesti.
O Manifesto proposto é direto e sutil. Uma exposição corajosa e honesta resgata a história recente para questionar o tratamento dado às travestis no Brasil. Nos vídeos projetados, as violências, tanto explícitas quanto veladas, são lembradas, mostrando a realidade, muitas vezes cruel, enfrentada por essas pessoas Brasil, país que mais mata travesti e transexuais no mundo.
O Manifesto proposto é direto e sutil. Uma exposição corajosa e honesta resgata a história recente para questionar o tratamento dado às travestis no Brasil.
Com seu foco no corpo travesti, Renata busca desmistificar preconceitos. Seminu, marcado por uma sociedade cis-normativa, carrega marcas indeléveis. O Manifesto Transpofágico questiona até que ponto a cisgeneridade continuará a exigir dessas vidas. Para isso, Renata, já com as luzes bem acesas, mergulha a plateia, em alguns momentos estupefata, em questões profundas e provocativas. A um homem mais velho, de cabelos brancos, que se identificou como Ernesto, pergunta se ele costuma dizer o ou a travesti. Ele responde, usando o artigo definido “o”, recorrendo ao sexo biológico, à sua visão conservadora.
Fazendo uso do humor, Renata volta no tempo pelo menos duas outras vezes até que ele compreenda a importância do emprego do artigo feminino, em toda e qualquer circunstância, quando se referir a travestis e mulheres trans. Ele cede, talvez contrariado.
Entre risos e perplexidade, o público gargalha, às vezes de nervoso, a cada pergunta de abismo que Renata dispara em sua direção. O espetáculo é, também, uma grande aula, uma experiência educativa.
O trabalho de Renata Carvalho como atriz ganhou notoriedade, especialmente após o impacto provocado por O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu. A peça, que gerou à época mais atos de transfobia e censura do que debates construtivos, tinha como objetivo provocar reflexões sobre o amor ao próximo, mesmo quando este é diferente de nós. Com seu Manifesto Transpofágico, Renata segue em sua cruzada.
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