Na primeira quinta-feira do mês de Novembro, 4, a atriz Fernanda Montenegro foi eleita a mais nova imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL). Montenegro, que era a única concorrente à vaga, recebeu 32 votos e assumirá, em cerimônia marcada para março do próximo ano, a cadeira 17, sucedendo o escritor e diplomata mineiro Affonso Arinos de Mello Franco (1930 – 2020).
Fernanda será a primeira mulher a assumir a cadeira, ocupada anteriormente pelo escritor Sílvio Romero, o poeta Osório Duque-Estrada, o crítico literário Álvaro Lins, o antropólogo Roquette Pinto e o filólogo Antônio Houaiss. Aos 92 anos, Fernanda Montenegro tornou-se a nona mulher a ser eleita pela ABL ao longo de seus 124 anos de existência.
AD IMMORTALITATEM
Fundada na cidade do Rio de Janeiro em 1897, a Academia Brasileira de Letras foi criada nos moldes da Academia Francesa e seu primeiro presidente foi o escritor Machado de Assis, um dos fundadores ao lado de Lúcio de Mendonça, Inglês de Sousa, Olavo Bilac, Afonso Celso, Graça Aranha, Medeiros e Albuquerque, Joaquim Nabuco, Teixeira de Melo, Visconde de Taunay e Ruy Barbosa.
Composta por quarenta membros efetivos e perpétuos, a Academia define em seu estatuto que “só podem ser membros efetivos […] os brasileiros que tenham, em qualquer dos gêneros de literatura, publicado obras de reconhecido mérito ou, fora desses gêneros, livro de valor literário”. A grosso modo, como resumiu o acadêmico Arnaldo Niskier, ocupante da cadeira de número 18, ”para ser candidato, duas condições são essenciais: ser brasileiro e ter escrito pelo menos um livro”.
No entanto, é sabido que a coisa vai muito além desses requisitos. O escritor Lima Barreto, por exemplo, teve sua candidatura negada em três ocasiões por não apresentar, segundo alguns acadêmicos, um modelo moral digno e um bom comportamento. Monteiro Lobato não conseguiu entrar pra patota em 1922 e 1926. Em ambas as ocasiões, o escritor perdeu para juristas. E em 1940 o escritor Oswald de Andrade definiu a ABL como um “asilo de impotentes’’ depois de receber um único voto para tentar ingressar na academia como o “candidato do povo“.
Essas são apenas algumas das centenas de histórias sobre Academia Brasileira de Letras que estão documentadas em obras, são contadas em mesas de botequim ou estão gravadas entre cigarros e gargalhadas em documentários diversos. Rituais como o “beija-mão” e o famoso chá das quintas também fazem parte do imaginário popular quando o assunto é a ABL, no entanto, nem tudo são poses e ramos de café bordados com fios de ouro: a cada nova eleição, a Academia recebe, merecidamente, uma enxurrada de críticas a respeito da branquitude extrema e da maioria esmagadora de homens entre os escolhidos para vestir o tão desejado fardão.
Historicamente, as candidaturas femininas foram reiteradamente condenadas e rejeitadas pela maioria esmagadora dos membros da academia. A primeira mulher a se candidatar a uma vaga foi a jornalista Amélia de Freitas Beviláqua (1860 – 1946), que escreveu uma carta ao então presidente da casa, Aloísio de Castro (1881 – 1959), propondo a sua candidatura. Nada! No ano de 1951, a proibição regimental às candidaturas femininas foi incorporada ao regimento interno da ABL, vigorando até o ano de 1976.
No ano seguinte, 1977, a escritora Rachel de Queiroz torna-se a primeira mulher a tomar posse, seguida por Dinah Silveira de Queiroz (1980), Lygia Fagundes Telles (1985), Nélida Piñon (1989), Zélia Gattai (2001), Ana Maria Machado (2003), Cleonice Berardinelli (2009), Rosiska Darcy de Oliveira (2013) e, agora, Fernanda Montenegro. Atualmente, apenas 5 das 40 cadeiras estão ocupadas por mulheres, o equivalente a 12,5% do total de vagas.
A atriz, apesar de emocionada, não deixa de colocar em xeque a falta de diversidade entre os membros da patota literária tupiniquim.
Em 2018, a escritora Conceição Evaristo tentou se eleger concorrendo à cadeira de número 7, que pertenceu ao cineasta Nelson Pereira dos Santos, mas obteve apenas um voto. O cineasta Cacá Diegues conquistou a vaga com 22 votos, seguido por Pedro Corrêa do Lago, com 11 no total. De lá pra cá, houveram dezenas de ações diretas em apoio à eleição de Conceição, que além de merecida seria absolutamente simbólica, afinal a escritora se tornaria a primeira mulher negra a tomar posse na ABL.
“Há necessidade de mais presença de personalidades negras e mulheres lá dentro”
Fernanda Montenegro não consegue esconder a alegria pela vaga conquistada. Com sorriso largo, tentando compreender como pode colaborar com a ABL, a atriz, apesar de emocionada, não deixa de colocar em xeque a falta de diversidade entre os membros da patota literária tupiniquim.
É evidente que entre chás, bolos, suspiros e conspirações, a Academia Brasileira de Letras ainda guarda um certo prestígio; no entanto, é também cada vez maior o número de brasileiros que enxergam em toda aquela pompa, em toda aquele exagero, uma elite intelectual que tem cada vez mais dificuldade em deixar de roer o osso que tem mantido entre os dentes há séculos ininterruptamente.
Conceição, Oswald, Amélia, Lima e tantos outros renegados pelos tais imortais não precisam de autorização ou votos para que suas obras vivam e renasçam diariamente no peito de cada brasileiro, tão pouco precisam de fardas ou fios de ouro em suas roupas para que sejam imortais em nossa memória. Eles são, simplesmente.
Em carta endereçada à amiga Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector resume com humor e perfeição o motivo pelo qual jamais aceitaria entrar na ABL. “Eu jamais entraria. A gente dá um espirro, já pensam que estamos morrendo e correm querer a nossa vaga”.
Clarice, como sempre, tinha razão.