O teatro é, por princípio, um rito. Apesar de haver algumas versões divergentes a respeito de suas origens, como a tese do contador de histórias ou a da imitação, a versão mais popular a respeito do surgimento dessa arte remete aos rituais Dionisíacos da antiga Grécia. Sua história, portanto, tem início em rituais e festas religiosas e por conta disso o transe coletivo é seu combustível natural.
De Tebas pra cá muito água rolou: ergueram-se e derrubaram-se templos e certezas, o mundo atravessou guerras e sucumbiu a tentações, nações foram dizimadas e impérios levantados. Junto a tantas outras artes, o teatro ajudou a contar essas histórias e nunca deixou de acompanhar o intenso e ritmado fluxo da humanidade. Se o homem e o mundo passaram por transformações, é evidente que com as artes, e dentre elas as cênicas, não poderia ser diferente. Muita coisa mudou e muito dessa transformação deve-se ao conhecimento adquirido pelo ser humano, aliado às técnicas desenvolvidas através dos tempos por ele.
Inúmeros intelectuais, em épocas distintas, dedicaram-se a pensar e compreender o teatro. Outros tantos artistas dedicaram seus dias à descoberta, muitas vezes intuitiva, de técnicas diversas para atuação, direção, iluminação e produção de espetáculos. Se o conhecimento avança sobre o futuro, é través da técnica que se ele encontra a prática e, junto a ela, a perenidade.
Diante disso tudo é impossível negar ao conhecimento e à técnica a responsabilidade pelas tais artes cênicas estarem onde estão nos dias atuais: universidades, museus, galerias e salas de aula, por exemplo. O teatro saiu do terreiro, das comemorações religiosas, e passou a fazer parte do cotidiano. De mero entretenimento essa prática adquiriu o status de arte e passou a ajudar a pensar, e explicar, as culturas, as sociedades e o próprio homem. Um teatrólogo é tão respeitado quanto um filósofo e suas idéias possuem, hoje em dia, a força de mil homens.
Se o homem e o mundo passaram por transformações, é evidente que com as artes, e dentre elas as cênicas, não poderia ser diferente.
Parece que o tal teatro chegou lá. A duras penas, é bem verdade, mas lá está ele: catalogado e aprisionado pra sempre no mais alto patamar das conquistas humanas ao lado de tantas outras invenções louváveis do bicho homem.
Que a vontade humana pelo conhecimento é insaciável e muitas vezes nos leva a extremos, todos sabemos. Colocamos no horizonte desejos sobre-humanos e aniquilamos limites nessa busca frenética, sejam eles morais, humanos ou lógicos. O problema não é só o sistema em que vivemos, mas o que esse sistema fez com a própria essência humana. Conhecimento e técnica servem tanto à criação quanto à destruição, basta ver que livros e fuzis são comercializados da mesma maneira nos dias atuais. De uma forma ou de outra, todos servimos ao deus mercado e por ele vendemos as vidas, os sonhos até mesmo a dignidade dos homens.
O conhecimento no campo teatral levou ao desenvolvimento de técnicas diversas. Técnicas essas que hoje constam em grades curriculares, programas de espetáculos, documentários e livros. Técnicas que transformaram aqueles pequenos ritos em espetáculos gigantescos, incontroláveis, onde “atores máquinas” fabricam histórias e “diretores engrenagens” descobrem novas formas de impactar um “público vitrine” que se estilhaça em gozos e aplausos.
Diante desse “funcionamento industrial”, os músculos tornaram-se mais importantes que os sentidos todos, e os olhos desaprenderam a enxergar o infinito quando passaram a só se preocupar em decorar os nomes difíceis que se escondem nos labirintos dos rodapés dos livros, todos eles devidamente etiquetados nas estantes da razão. Apesar de toda disciplina e dedicação, o delírio é tão importante ao ator quanto seus músculos rígidos e movimentos preciosos. Junto ao seu fôlego de pantera, o homem do teatro precisa de um olhar selvagem que desafie o cotidiano, por isso é preciso que o ator seja, acima de tudo, um flâneur.
Walter Benjamin escreveu que a primeira visão que se tem de uma aldeia é sempre única e incomparável, afinal, ainda não se fizeram sentir sobre a retina os efeitos do hábito e da rotina. Aquilo que nos rodeia pode passar de mero cenário a personagem: um personagem único, com corpo, alma e vontade própria. Flanar nada mais é do que andar ociosamente, sem rumo. A expressão surge na França, no século XIX, como denominação de uma nova experiência urbana proporcionada pelo crescimento acelerado das grandes metrópoles, nesse caso Paris.
Os desenvolvimentos tecnológicos nos meios de transporte e de produção, como a máquina a vapor, a industrialização e as ferrovias, mudaram não só as rotinas da cidade como também o modo de pensá-las e habitá-las. Entre os novos hábitos e costumes urbanos surge a figura do flâneur, definido e compreendido por Benjamin através das passagens ou galerias da cidade-luz.
Os surrealistas, por exemplo, acreditavam tanto na prática que André Breton, Papa do grupo, criou métodos de passeio à deriva para inspirar seus poemas. Aragon, por sua vez, escreveu o maravilho O Camponês de Paris inspirado em visões de suas andanças pela capital francesa. Além dos discípulos de Breton, muitos outros artistas fizeram uso dessa prática, alguns deles inclusive antes da definição de Benjamin, como no caso do maior de todos os flâneurs: o poeta Charles Baudelaire.
O ato de flanar é uma forma de poetizar o cotidiano, buscando através da revelação o acesso ao maravilhoso. A cidade não será mais compreendida como um espaço de deslocamento, mas como uma via de possibilidades poéticas. Uma cidade cortesã, mãe fértil, com quem podemos nos deitar sempre que for preciso e a quem estamos sempre prontos a nos doar sempre que for possível. Cidade assassina: sempre pronta a nos devorar diante do primeiro vacilo.
Cada esquina passa a carregar em seu umbigo todas as cidades do mundo e, dentro delas, todos os seus perigos, belezas, encantos e desesperos. Trata-se de uma cidade-poesia. Uma cidade espetáculo que recusa a cidade-comércio, a cidade-turismo e a cidade desprovida de delírio e de alma. A experiência de sair à rua passa a ser um ato de magia cotidiana.
Vivemos em um mundo prático e modorrento, habitado por especialistas em qualquer coisa que insistem em enaltecer a lógica em detrimento do inconsciente e do delírio. Se por um lado o ofício do ator prescinde de técnica, por outro é preciso redescobrir a vida que está oculta nas belezas das paisagens desconhecidas, no sorriso perdido daquela pessoa que nos traduz o mundo, na suave brisa que corta o rosto diante da imensidão do mar misturado ao sol.
O ator tem na fantasia seu maior figurino e na imaginação sua única crença. É preciso que continuemos firmes no caminho do avanço técnico, é claro, no entanto, não podemos esquecer que existe um ardor no fundo da alma, e que esse ardor tem a capacidade de extrair beleza das imperceptíveis fendas da existência.
Podemos seguir em frente, trôpegos e desesperados, no ritmo contínuo do relógio-ponto que marca lentamente os passos do nosso derradeiro ato; ou podemos nos perder pela cidade, tocando suas partes a procura da vida que se esconde nos paralelepípedos de uma rua escura, nas obscenas curvas de uma silhueta perdida na madrugada ou no sorriso estraçalhado de um poeta do século XIX que, em seu passeio solitário, se esqueceu até mesmo dos imperceptíveis passos da morte.