Enquanto eu e o domingo tropicávamos pelas escadas do prédio, o teatro brasileiro se despedia de uma de suas mais notáveis vozes, de uma de suas mais impressionantes mulheres. A atriz e professora Camila Amado, figura das mais cativantes de nossa arte, nos deixava aos prantos e trancos enquanto o último domingo me embalava em seu sono disforme.
Camila foi gigante, talvez uma das maiores de nós, pobres seres do teatro, e sua história muito bem contada e esculpida ao longo de seus 82 anos não serve apenas enquanto inspiração, mas também enquanto lição, aprendizado.
Generosa, representou como niguém o papel de mestra, tornando o seu legado uma espécie de exemplo e, porque não dizer, métódo sobre a dor e a delícia de dedicar a sua vida a um ofício. Muito se falou e tanto se escreveu sobre a sua contribuição indiscutível ao teatro brasileiro. Fazer por aqui uma espécie de retrospectiva de sua vida e obra seria chover no molhado, de modo que o único intuito dessas linhas tortas é simplesmente exaltar a sua mais impressionante mania: a paixão.
É preciso paixão para seguir adiante, tocar o barco, trilhar com o bonde. Nesses tempos em que arte e cultura são sinônimos de banditismo e dinheiro jogado fora, a imagem de uma Camila acossada, diante de um tribunal obsceno de generais e patrulehiros da liberdade, é uma forma de compreender como a paíxão, mais do que o amor, move seres e montanhas em direção à eternidade.
Camila Amado, mais do que atriz ou professora, foi uma guerreira feita de carne e de aço. Camila foi zica, foi treta, e seu maior legado é a coragem que habita o peito dos apaixonados.
“Abaixo a ditadura”, “viva a cultura”, “eu não negocio com covardes”, todas essas frases, carregadas de paixão e significado, nasceram em seu peito, corroeram sua alma e tornaram-se gritos de liberdade que avoaram atravéz de sua voz de apaixonada. Camila Amado, mais do que atriz ou professora, foi uma guerreira feita de carne e de aço. Camila foi zica, foi treta, e seu maior legado é a coragem que habita o peito dos apaixonados.
É preciso mudar, reinventar, transformar a realidade em algo que pareça menos dor e injustiça e seja mais beleza e fantasia. Resistir de cara limpa diante do horror não é lá tarefa fácil, como também não é difícil se entregar à procela violenta que a existência nos impõe travestida de rotina.
Alguns encontram na paixão a saída para as mazelas que nos afligem a alma. Camila foi dessas, jóia bruta e preciosa, e só nos resta agora, além do agradecimento, tomá-la enquanto exemplo de que é possível vencer o pesadelo através do delírio e do sonho.
Usando a saída fácil do clichê, agradecemos por tanto, e com a mão trêmula dos desvairados apaixonados pela vida e pela rebeldia, erguemos o punho em riste e gritamos aos prantos: estamos juntos, Camila. Afinal, se apaixonar ainda é o melhor remédio contra essa vida doída e sem sal contra essa existência sem gosto e sem retorno.