O contexto de guerra pode ser entendido enquanto um processo desumanizador – o momento em que a “humanidade” é subtraída de maneira que não é capaz de compreender a reconfiguração forçosa a qual a ideia de indivíduo é submetida. Quebra de imperativos de lei, uma intensa e contínua banalização da violência, a morte, próxima e em larga escala, são elementos que promovem uma desestruturação em todos os aspectos que constituem os campos individuais e os coletivos. Os laços usados para reunir os motivos que justificam a proximidade e a empatia são destruídos e o cenário de caos dificilmente é assimilado sem um longo período. É redundante dizer que a guerra é traumática em aspectos e níveis tão múltiplos quanto os indivíduos que a vivenciaram. Soa quase insensível com quem, de fato, presenciou seu cerne ou suas extensões.
No entanto, não sentir, não vivenciar, não significa não entender (assumindo, claro, que as compreensões se dão por canais e intensidades distintos). Os horrores da guerra são acessados por imagens e narrativas variadas em formatos e circunstâncias. O universo da guerra chega desde as fotografias documentais e depoimentos reais até as ficções mais inventivas possíveis. A guerra é um fenômeno que se faz objeto de todas as áreas de conhecimento. O mundo envolve-se intensa e continuamente a ela.
A memória torna-se compartilhada, ainda que histórica e contextualmente distante. Longe de hierarquizar as manifestações provenientes de um contexto de guerra e também distante de averiguar o “caráter verídico” destes, Oliver Sacks, em um texto chamado Quando as lembranças nos pregam peças explora a questão da memória e das lembranças em uma relação entre o plágio, o autoplágio e o caso de eventos fortes tais como a tortura. Embora um tanto afastado da temática da guerra, ele propõe um interessante ponto para se pensar as várias camadas de significação existentes ao se acessar as questões. Sacks coloca:
Relatos brutos que exploram a palavra entendendo que todas as coisas ditas indicam existência – ainda que de coisas indizíveis.
“Parece que não existe, nem na mente nem no cérebro, nenhum mecanismo para garantir a verdade de nossas recordações, ou pelo menos o caráter verídico delas. Não temos acesso direto à verdade histórica, e aquilo que sentimos ou afirmamos como sendo verdadeiro depende tanto de nossa imaginação quanto de nossos sentidos.
Não existe um modo pelo qual os acontecimentos do mundo possam ser transmitidos ou gravados diretamente em nossa mente; eles são experimentados e construídos de modo altamente subjetivo, que é diferente em cada indivíduo, para começar, e reinterpretado ou revivido diferentemente a cada vez que são recordados.
Com frequência nossa única verdade é a verdade narrativa, as histórias que contamos uns aos outros e a nós mesmos – histórias que reclassificamos e refinamos sem cessar.”
Reúne-se, então, os dois pontos dos quais gostaria de me referir sobre a peça Do Cão Fez-se o Dia, da Inominável Companhia de Teatro: a ideia de um indivíduo em estado de guerra e a verdade narrativa.

A dramaturgia de Marcelo Bourscheid, inspirada nas obras de Valter Hugo Mãe, apresenta camadas de “ficcionalização”, conforme é sugerido, que promovem um movimento de intercâmbio entre a ficção (que também é ficcionalizada) e o real. A temática, compartilhada com o autor português, densa, carregada de questionamentos existenciais que parecem ser direcionados “aos céus ou ao outro lado do muro”, é aprofundada com um caráter poético intenso e revela a fragilidade humana. A guerra, para além das super-estruturas, atinge o micro, atinge o “eu”.
Uma família que vive a realidade da guerra também de modo ficcional: histórias que se contam para se existir. Uma mãe que cria histórias sobre a paternidade dos filhos, um irmão que mente sobre a existência de uma pai para a irmã, uma atriz que cria uma narrativa para sua vida. Relatos brutos que exploram a palavra entendendo que todas as coisas ditas indicam existência – ainda que de coisas indizíveis. O quanto disso é resultado de um processo inerente à guerra, da qual, de alguma maneira, todos são vítimas? Como definir o que ali é “real” e o motivo que legitima a realidade?
As perguntas parecem indicar um lugar que nos faz recordar o que diz Marie-José Mondzain: “la vérité est image mais il n’ya a pas d’image de la vérité” [a verdade é imagem, mas não existe uma imagem da verdade]. Sabe-se, contudo, que a humanidade, àquela, que às vezes se faz perdida, parece ter encontrado uma peça em que aportar.
Do cão fez-se o dia sob a ótica literária
Por Anna Carolina Azevedo
Um programa válido a quem já se aventurou ou queira se aventurar pelas linhas de Valter Hugo Mãe é assistir a Do cão fez-se o dia, espetáculo da Inominável Companhia de Teatro – prestigiar a produção artística local é um dever do curitibano que se interessa por cultura.
Com dramaturgia livremente inspirada no universo literário do angolano-português, a peça estrutura-se sobre o delírio de um menino que busca nos livros e sonhos a fuga para suportar a dor diante das consequências de um país em guerra. As passagens de O filho de mil homens são certeiras, sobretudo a metáfora da leitura enquanto solução para os males do corpo (uma das minhas preferidas no livro, diga-se).
O bom texto de Marcelo Bourscheid consegue refletir a carga dramática dos livros de Hugo Mãe e funciona no palco. Penso que também funcionaria – e muito bem – como literatura, devido a um trabalho estético de narração e linguagem bastante apurado. Em mim, pelo menos, despertou a vontade de ler em prosa essa composição concebida para o teatro.
Destaco, por fim, a atuação de Rafael di Lari, o instigante recurso cênico dos blocos de gelo a derreterem-se e a cena ao som de “The Boy with The Thorn in his Side”, que me tocou em especial.
SERVIÇO | Do cão fez-se o dia
Produção: Inominável Companhia de Teatro
Quando: Até 14 de junho, de quinta a sábado, às 20h; domingos, às 19h
Onde: Teatro José Maria Santos, Rua Treze de Maio, 655
Ingressos: R$ 20 (inteira); R$ 10 (meia entrada)