A morte é, por mais que tentemos esquecê-la, o grande tabu do ser humano. Impossível negar que sua gélida figura vez ou outra nos mostra os dentes e, meio sem querer, acaba por nos tirar o sono e a calma. Apesar de fazer parte de nosso cotidiano, a finitude humana ainda é um dos assuntos mais abordados nos consultórios psiquiátricos de todo o mundo, esses gavetões de etiquetar almas e demônios.
Poucos conseguem fazer de sua vida uma obra maior do que a própria morte, por isso, é preciso louvar quando um homem como Naum Alves de Sousa, gênio da raça, se entrelaça com a eternidade e alça voo pela estratosfera. Naum foi, é e sempre será um desses homens maiores que a própria vida e, por consequência, imunes aos desastroso planos da dama da foice.
Falecido no último dia 09 de abril, Naum Alves de Sousa foi um diretor, cenógrafo, figurinista, artista plástico, dramaturgo e professor brasileiro. Essa enumeração de funções, que à primeira vista pode parecer piegas, faz-se necessária por conta da trajetória inquieta e ruidosa de Naum pelas artes. Afinal, poucos artistas tiveram tanta competência e genialidade em funções que à primeira vista parecem tão distintas entre si.
Digo parecem, pois ao analisar a vida desse incansável criador percebemos que a paixão e a curiosidade o levaram sistematicamente a se aventurar por novos caminhos, sempre em busca daquela chama que nos faz arder e, justamente por nos consumir, nos torna mais vivos. Naum Alves de Sousa se deixou consumir pelo fogo da vida e, por conta disso, é um homem fadado à eternidade.
Nascido em Pirajuí, no estado de São Paulo, Naum teve desde cedo formação presbiteriana, o que marcaria sua obra até o fim. Terminado o colegial clássico em Lucélia, o dramaturgo frequentou um mês a Faculdade Paulista de Psicologia, antes de se mudar para São Paulo no início dos anos 60, onde passa a dar aulas de educação artística e iniciação às artes plásticas para crianças e adolescentes. A experiência como professor somada à sua trajetória de sucesso enquanto artista plástico o levariam, anos mais tarde, a ser docente de cenografia na Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA) por notório saber. Nos anos 70, com alguns alunos da Fundação Amando Álvares penteado (FAAP), entre eles Carlos Moreno e Dionisio Jacob, funda o grupo Pod Minoga.

Pod Minoga
O Pod Minoga é um dos grupos experimentais que surgiram na cidade de São Paulo na década de 1970. Caracterizado pela criação coletiva e por uma proposta alternativa de produção, o grupo logo ficou reconhecido no mainstream da marginalidade paulistana, fora do circuito comercial de teatro.
A origem do grupo se deu através de um curso criado por Naum Alves de Sousa para a FAAP, de 1965 a 1969. Através de jogos teatrais, improvisações, técnicas de mímica e artes plásticas para cena, além de ousadas adaptações de obras clássicas como as de Shakespeare, Naum desenvolveu um trabalho precioso que vislumbrava um grupo de teatro livre e despreocupado com as exigências de um mercado indecente.
Com o fim do curso em 1970, alguns dos participantes decidem, junto ao professor, dar continuidade ao trabalho desenvolvido. A partir daí, o Pod Minoga instala-se provisoriamente na casa de Naum e passa a apresentar experimentos cênicos a convidados previamente selecionados.
Em 1972, já estabelecido, o grupo inaugura sua sede, a Minoga Studio, na rua Oscar Freire, e começa a apresentar profissionalmente suas criações coletivas em cenas baseadas na vivência de seus integrantes. É a partir desse momento que torna-se clara a inquietação do grupo, que passa a desenvolver trabalhos baseados no circo, na revista, na ópera e até mesmo no cinema. A profissionalização definitiva se dá com o espetáculo Folias Bíblicas, de 1977.
É fato que a crítica da época não perdoou as inovações do grupo em alguns sentidos, e várias vezes julgou os atores como amadores sem técnica, o que só demonstra que Naum e sua trupe estavam no caminho certo, já que a crítica mastiga aquilo que o povo deveria devorar. Com a profissionalização de seus atores, o grupo vai, pouco a pouco, perdendo força. Mas é fato que a partir dali o nome de Naum Alves de Sousa se firmou como diretor, cenógrafo, figurinista e, principalmente, dramaturgo.
A vida pós Pod Minoga é absolutamente eletrizante. Naum Alves de Sousa passa a desenvolver diversos trabalhos em diferentes frentes artísticas. Entre 1973 e 1977, ainda no grupo, foi o responsável por desenvolver os bonecos brasileiros da Vila Sésamo. Escreveu roteiros para especiais de Renato Aragão e diversos programas televisivos. Foi diretor daqueles que muitos consideram o melhor show da cantora Elis Regina, “Falso Brilhante”, e criou cenários e figurinos para a peça Macunaíma, de Antunes Filho, um marco do teatro mundial. Foi, ainda, roteirista do filme Romance de Empregada, dirigido pelo cineasta Bruno Barreto, e dirigiu a série A Guerra dos Pintos, na TV Bandeirantes.
Como diretor teatral a coisa não foi diferente. Adaptou poemas de Adélia Prado para o espetáculo Dona Doida, estrelado por Fernanda Montenegro e dirigido pelo próprio Naum. Entre os trabalhos mais relevantes como dramaturgo ,vale lembrar a famosa trilogia formada por No Natal a Gente Vem te Buscar, A Aurora da Minha Vida e Um Beijo, um Abraço, um Aperto de Mão. É através dessa trilogia que o dramaturgo se desnuda e enfrenta seus próprios fantasmas do passado em relação a sua formação pequeno-burguesa e religiosa.
Conquistou ao longo de sua carreira diversos prêmios, entre eles o Moliére, Mambembe, APCA e Ziembinsky. Foi, portanto, um artista sempre em movimento, buscando através de sua obra uma saída para a existência que vive a nos amolar. Naum Alves de Sousa levou consigo o sabor amargo da saliva mortuária, mas nos legou a liberdade que deixou em suas obras.
Que através das asas desse homem de teatro possamos aprender a voar e, quem sabe, vencer de alguma forma essa dura certeza que nos consome. Agora “avoa”, menino. “Avoa” pra essa eternidade que guarda aqueles sonhos que nos mantém vivos. “Avoa” e vive pra sempre dentro nós, mestre!