Em primeiro lugar, é preciso dizer aos caros leitores que o conhecimento filosófico deste que vos escreve é zero, de modo que clamo aos que esperavam chafurdar no exercício do pensamento e perderam a viagem que não percam também a paciência e se acheguem de mansinho, mesmo a contragosto.
A escolha das palavras em destaque, o famoso “título acima”, não vem por conta do entendimento da parábola da biga, diálogo famoso do pai da filosofia, mas da compreensão de um causo ouvido por aí: a parelha dos burricos de Pirassununga. Assim, sem pretensões gregas, longe da pureza do pensamento de Atenas, tratando de uma encrenca que se deu entre Pirassununga e Aguaí, creio que posso me meter a besta e deixar correr o dedo pelo teclado sem correr o risco de ser acusado de tratar do que desconheço. Só existem três testemunhas dessa peleja acontecida na estrada do Motel Aeronight: eu, pego de surpresa pelo segredo, Sócrates, o boca mole do rolê, e o céu azul crivado de nuvens que enfeitava aquela tarde.
O bairro em questão é conhecido por Matão, mas pode ser representado por qualquer cafundó desses onde a gente tem a certeza de que consegue se enterrar pra sempre à espera da morte, mesmo que seja mentira. Perdido nesse cantão há o Reedita, um pequeno botequim local que seria apenas mais um não fosse seu dono o famoso Platão. O velho, com cara de estátua e ar de sábio, é um figura e tanto. Adora prosear, como se diz no interior, de modo que o Reedita é uma falação só.
Apesar da aparente bagunça, a coisa por ali funciona. No pedaço quem manda é o velhote, dono da cana, portanto ali só fala quem o velho consente, só vive quem o velho deixa viver. É simples. Sócrates, único ajudante do cabra que ganhou o apelido por conta da parecência com o doutor, foi quem deu a letra: era começo de ano e a cheia do rio havia lavado tudo que é pasto daquelas bandas. Não havia caminho a seguir, fosse pra frente ou pra trás, que não levasse ao barro espesso e pegajoso que estava por toda parte. Não é difícil imaginar que pra onde se quisesse ir, não se podia ir de carro. A saída? Dois burrinhos perdidos na terra molhada. Platão, que nunca soube ao certo o que era um corcel, decidiu batizar os burricos de cavalo e tocou viagem em direção ao umbigo do estado.
A viagem que não aconteceu foi um quiproquó dos diabos. Astolfo, o burrico mais claro, de pescoço longo e elegante, batia rumo sempre em frente num trote frondoso. Obedecia aos barulhos dos lábios do cocheiro e seguia sempre, feito ganhasse beijos a cada toque de “adelante”. Já Ataulfo, de pescoço curto e toque rebelde, fazia tudo ao avesso. Foi só pisar no barro pra tentar voltar pro seu canto, pro seu pasto, em busca do sossego da próxima pestana pra acalmar o estômago oco. Ali, dividindo entre as forças dos dois burros, o homem parou no meio da estrada e ficou, também dividido.
A razão lhe dizia para afrontar Ataulfo e enforcá-lo, tocando rumo junto a Astolfo. O desejo o levava a esquecer do burrico branco e voltar pra casa de braços dados com o pescoço curto. A realidade, no entanto, era a inércia, o empaque do jogo cruzado de forças. Sócrates explicou-me, entre doses de imburana, que é só tocar o casco na estrada que cada “cavalo” quer seguir sua própria vontade, guiar seu próprio caminho, de modo que a luta é eterna e cabe ao “volante” lidar com a peleja a fim de terminar a ida; assim como na vida. E assim também o é no palco, completei em cima.
Diversos pensadores, talvez sem a mesma simplicidade que os velhos de Pirassununga, escreveram sobre essa batalha interiorana pelo tempo.
Explico-me: o causo do velho Platão, rei da espremida, é a representação da vida de todo homem, toca todo o coração humano e grita no peito de todo ator. Diversos pensadores, talvez sem a mesma simplicidade que os velhos de Pirassununga, escreveram sobre essa batalha interiorana pelo tempo. O grego Platão, um anônimo pras bandas do Reedita, colocou asas nos cavalos e as retirou dos poetas. Nietzsche viveu entrecortado pela janela da alma, de mãos dadas a Dioniso com Apolo lhe agarrando os calcanhares. Mas talvez tenham sido os homens e mulheres do teatro, os artistas da cena, os que mais tenham sentido na pele essa batalha perene.
Oswald de Andrade, tão lúcido quanto radical, escreveu certa vez que o teatro precisa esclarecer através da invenção. A frase de Oswaldão exemplifica bem a encruzilhada do ator. É preciso que continuemos a acreditar na fantasia, é preciso que ainda estejamos com os pés fora do chão e a cabeça ao alcance do sonho; é preciso sim, mas não é fácil. Com uma rotina cada vez mais racional, correndo atrás de grana e de espaço, divididos entre os escritórios e os palcos, as pessoas envolvidas com teatro hoje encontram-se, na maioria das vezes, mumificadas pelos braços da burocracia, enclausuradas pelos gabinetes públicos, reféns do carimbo de um benfeitor imaginário e, por incrível que pareça, isso também é necessário, infelizmente.
Não falamos mais apenas da disciplina restrita aos trabalhos técnicos que vemos no palco, mas de toda uma estrutura cada vez mais complexa e sufocante que pretende, ao meu ver, estrangular a produção aos poucos, nos alimentando a conta-gotas, até que a força nos condene à inanição e à mendicância. É dose, mas acontece e quase sempre é imperceptível. O cavalo branco que nos atormenta não pertence a Napoleão, mas sim à razão, e através de sua adoração temos sacrificado o nosso outro cavalo que, sem forças, trota em direção à morte.
Que Breton nos perdoe mas, ao menos por aqui, a bandeira da imaginação já foi retirada do mastro e proibida aos pequenos produtores que, sem opção, veem-se obrigados a se adequar ao mercado, como dita o bordão do engravatado bom burguês. Sonhar, na cultura brasileira, é privilégio de poucos, é preciso admitir. A maioria de nós que resiste apenas sobrevive, e aos trancos e barrancos, numa eterna batalha entre dois burros chucros.
Quando a coisa vai mal como agora pro nosso lado, é preciso que busquemos sempre abrigo do lado mais quente do peito, independente de que lado seja, a escolha fica a critério do dono do arreio. Opção não nos falta, é bem verdade, afinal cavalo chucro e boas histórias pra contar, por aí existem aos montes, e brotam em todo canto, seja em Atenas ou nos cafundós de Pirassununga.