Ali não existem relógios ou quadros pendurados. Na realidade, a maioria das pessoas diz que nem mesmo paredes foram erguidas naquele lugar. Estamos falando do nada, do breu, da fossa mais profunda que existe no oco de cada um. Um lugar inóspito, amaldiçoado, cultivado e regado por nós. É feito uma prisão erguida previamente pelo próprio condenado. É pânico, medo, insegurança. Um buraco negro perdido no tempo-espaço de nós mesmos. Quando mergulhados por ali, temos a impressão de que naquelas bandas o relógio anda a passos curtos ou até mesmo deixou de existir. É isso. Pois aí, nesse oco de si, é que sempre viveu o ator Percy. Apesar do reconhecido talento, o bom ator uma vez deu de ceder espaço ao homem sonhador que também habitava aquela casca e, pasmem, o troço aconteceu no palco. Não houve cavalo que segurasse a pose quando os sonhos de Percy vieram galopantes roubando-lhe as falas e emudecendo-o em cena.
Não consigo precisar ao certo como ou quando conheci Percy. A verdade é que pra gente, a turma do Carlos Gomes que cresceu assistindo às suas peças, o homem era o próprio teatro. “Um ator colossal”, gritávamos em uníssono no botequim do Michael, depois de assistir à sua interpretação de Otelo. O china magricela, que usava um boné surrado com o búfalo de Jordan ventado pela fuça, tentava em vão conter nosso entusiasmo. Era impossível! Percy havia mudado nossas vidas com sua visão do Mouro de Veneza. Ali, com o bigode ralo penteado pela espuma espessa e borbulhante, prometemos uns aos outros que acompanharíamos aquele “ator assombro” por todos os cantos. Viramos, daquele momento em diante, apesar de só admitir o troço publicamente hoje, umas “Percyzetes”. E correndo os palcos estado afora acompanhamos, mesmo que de longe, os passos do gigante. E Percy Pícora, senhores, foi longe. Muito longe. Ao menos até aquela noite. Ao menos até conhecer o seu tormento. Qual deles? O tal branco, ao menos ao que parece.
Naquela noite, Percy parecia sereno. Nós, eu e meus amigos, estávamos entre os expectadores convidados e mal ouvimos quando as portas de ferro do teatro foram levantadas anunciando a abertura do espaço. Lá dentro, hoje sei, o ator colossal aquecia a voz à moda antiga: fumando um cigarro e pigarreando lentamente enquanto revisava as marcações na cabeça. No saguão, tudo corria nos conformes. A noite era de estreia e por conta disso haviam pequenos mimos reservados aos convidados, como era costume na época. Enquanto eu e meus amigos brindávamos com cidra a sorte dos convites de última hora conseguidos pelo tio do Caio, Percy caminhava lentamente pelo proscênio correndo as mãos pelo veludo vermelhos das cortinas. Dali, de cima do palco, ele não teria ouvido o nosso brinde desejando-lhe toda a sorte do mundo enquanto amassávamos como lordes nossos copos de plásticos uns nos outros.
As escadas foram liberadas. Encontramos rapidamente os nossos lugares e, lembro-me bem, Humberto Bartume se assustou com o primeiro sinal. Rimos alto. Silêncio. Lá atrás, Percy acendia mais um cigarro enquanto mergulhava na escuridão daquele espaço. Não havia mais minutos, espaços, pessoas. Não havia mais peça. Era o preto no preto. Um silêncio tão profundo que chegava a ensurdecer. Era aquela sensação tão conhecida por ele: o negror dos minutos que antecedem o terceiro sinal e a abertura das cortinas. Só quem já esteve numa coxia reconhece esse tom de escuridão. E como Percy se sentia vivo diante daquele breu. Ali, só ali, era realmente feliz.
Naquele pequeno intervalo de tempo onde o próprio tempo se perdia, Percy sabia que encontrava a eternidade. O resto era ofício, sobrevivência, teatro pra ganhar a vida e pagar boleto. Aquilo não, aquilo sim era mágico. O resto era o arroz com feijão do palco: “parte técnica, parte desgosto”, como dizia o grande Bonifácio Benevides, seu mentor e até hoje ator preferido. O resto é isso e isso só, pensou Percy. A escuridão não, “ali reside toda a magia da profissão”, afirmou pra si.
Na plateia ouvíamos o terceiro sinal. Lembro-me que relaxei e propositalmente repousei meu braço no braço direito da poltrona, fazendo tocá-lo de leve no braço da linda Fabi, que por pura magia havia sentado bem ao meu lado. Lembro que o Caio me olhou meio de esgueio e sorriu delicadamente aprovando minha ousadia. Lembro também que o cabelo dela cheirava muito bem, e que em pouco tempo ela tirou os braços da poltrona e os enroscou no pescoço do rapaz ao lado que eu ainda não tinha visto. Lá dentro, Percy deve ter sentido minha própria dor quando se deu conta de que, pela primeira vez, a escuridão não iria ceder. Ele iria mergulhar no breu até o fim. Enquanto as cortinas se abriam eu armava a maior carranca do mundo. Fabi tinha os braços e os lábios enroscados no rapaz ao lado e lá dentro, crucificado no proscênio, Percy fechava os olhos como se pudesse barrar com a sua retina toda a luz do mundo. Terceiro sinal.
De olhos fechados, o ‘ator colossal’ permanece preso no nada, no breu, no mais profundo oco de si.
As cortinas se abriram. No palco, Percy Pícora, “o ator colossal”, estava diante do público de punhos cerrados e olhos fechados. Ele não se movia. Ao meu lado, Fabi continuava enroscada em seu moço e ambos, entregues ao contorcionismo de suas línguas, nem se tocavam que a peça escorria pelo ralo. À minha esquerda, Caio parecia perplexo e esperava que tudo fizesse parte do espetáculo. Não fazia. Percy Pícora foi retirado do palco ainda imóvel. O ator parecia uma estátua na mão dos colegas de cena desmontados de seus personagens. Nós permanecemos atônitos na plateia, até que o produtor apareceu surgido do nada e pediu as desculpas devidas. Disse que o ator principal, lembro-me que não mencionou o nome de Percy, havia passado mal e que a seção seria cancelada.
Como todos os ingressos eram cortesias não havia problema em relação a reembolsos, mas que deveríamos aproveitar o coquetel no saguão, reservado anteriormente para depois da peça onde o “ator principal” receberia os convidados para as tradicionais bajulações pós-estreia. No próximo dia, o dia seguinte, a temporada aconteceria normalmente e seríamos novamente convidados para a “segunda estreia”. Isso nunca aconteceu. Lembro que todos pareciam tristes, menos Percy, quando parado ali, diante de nós. Fabi resmungou algo, não me lembro o que ao certo, mas sua voz soava linda mesmo diante da tragédia. Saímos.
Caminhamos todos juntos debaixo de uma garoa fina. Éramos cinco: Caio, Humberto, Fabi, Rafael e eu. Apesar de ensopado, era inegável que o imbecil tinha sorte. Longe dali, ainda de olhos fechados, Percy permanecia sentado enquanto era bombardeado por perguntas vindas de todos os lados. Ele nunca as respondeu ou sequer voltou a abrir os olhos. Já nós, seguimos a vida. Daquele dia em diante, a figura de Percy Pícora foi se apagando aos poucos de nossas vidas, como o próprio teatro, aliás.
Caio acabou viajando. Viajando muito. Hoje é garçom em Barcelona, e vez ou outra me manda recados no Facebook como se tivéssemos a mesma intimidade de antes. Quando posso, respondo. Humberto, o Um, sumiu do mapa. Uns dois anos depois daquela noite, seus pais se mudaram para outro estado e o cabra foi junto. Deve estar até hoje por lá, atormentando o senhor e a senhora Bartume com suas cuecas penduradas no box do banheiro. Eles ficavam loucos com isso.
Fabi permaneceu linda e me atormentou por algum tempo, depois cedeu lugar a tantas outras durante a vida, apesar de seu sorriso estar sempre presente nos meus pesadelos. Outro dia a encontrei no metro. Não me reconheceu. Estava moça ainda e trazia em cada uma das mãos, grudados, os filhos ainda garotos. Acabei esbarrando em seu braço quando descia correndo no Anhangabaú e vi que, apesar de o Rafa ter virado história naquele mesmo verão, a morena manteve-se fiel ao trato do cabelo. Fabi usa até hoje o mesmo perfume, e como cheira bem o seu cabelo. Confesso que por um instante aquilo me transportou praquela paixão de adolescente e tive vontade de lhe dar a mão também e levar a todos, ela e seus filhos, para a minha casa. Não o fiz, evidentemente. “Que fique com o maldito Rafa”, pensei com a violência do ciúme, enquanto minha vida escorria pelos trilhos da linha vermelha.
Falta Parcy, certo? Bem, Percy Pícora permanece ali: onde não existem relógios ou paredes. Alguns dizem que nem mesmo o tempo o fez falar outra vez. De olhos fechados, o “ator colossal” permanece preso no nada, no breu, no mais profundo oco de si. É o condenado de uma prisão que construiu com as próprias mãos. É, até hoje, o único ator que emudeceu em cena não por conta do branco, e sim por conta da própria escuridão.