Eis, diante de teus olhos, morena, a rua nua e crua. A rua que atormenta e dá alento. A metrópole de cimento que anuvia a nossa beleza na fumaça que carrega: preta e densa, feito o amargo útero da terra.
A rua é a morada do acaso, reduto do encontro e via da possibilidade. A rua leva ao outro, carrega em seu fluxo todos os nossos sonhos e guarda lembranças em cada paralelepípedo. Na rua estamos todos nós, os ditos vivos. Aqueles que buscam migalhas de existência no dia a dia, que cavocam a rotina garimpando os destinos que se escondem em cada esquina. A rua não é opção, a rua é sina!
É através dela que cruzamos as tormentas desse mundo tempestade que não dá sossego. Em seu ventre de piche e cimento estão guardados segredos maiores que a própria vida. Nela transitam horrores, desesperos, alegrias, dores e todos os tipos. É um eterno retorno para a vida que tardia nas horas de sono e, principalmente, é um direito de todos.
O teatro também precisa sair à rua e sobre esse assunto escrevi um texto que pode ser lido nesta coluna. No entanto, ocupar a rua não é tarefa das mais fáceis, por mais que colocar-lhe o pé na fuça pareça coisa simples. Como em todo lugar detentor de mistérios e misticismos é preciso saber chegar à rua, na miúda, respeitando seus guardiões e aqueles que fazem de seus encantos o único destino possível. Adentrar a rua como quem adentra um templo.
Àqueles que acreditam no teatro, o sagrado não é lá grande novidade. Estão absolutamente acostumados a todo tipo de entidade, afinal, todas elas habitam também o palco. E eu, que sempre acreditei nessa verdade, acabei surpreendido, colocado de frente à dúvida por conta do aparecimento do homem invisível.
Centro da cidade. O sol escorre pela silhueta da antiga igreja que colhe mortos. Na praça, de frente ao anjo barroco de instrumento em punhos, há uma aglomeração. Um picadeiro grafado à água e suor nas escamas do cimento. A escada da igreja do centro serve de plateia ao teatro, mas o espetáculo ao qual todos ali estão acostumados é a própria vida. A sobrevivência rotineira que mata, que agoniza, mas, também, cria as possibilidades de um sorriso.
Ali, diante daquele picadeiro imaginário, é anunciada a única lei a ser seguida: a felicidade.
Tetro de rua é rito e, só por isso, passa longe de todos os artifícios que envolvem o negócio explícito e desforme que nos maltrata e corrói.
Uma personagem cruza os ares sobre nossas cabeças, presa ao edifício que nos intimidade com sua grandeza de ferro, concreto e lágrimas. Muitos ali, diante daquele prédio, nem tem onde morar. Muitos ali esqueceram-se do significado de abraçar. Para eles a vida é bordoada, e é bordoada que se enfrenta só.
Mistério no ar. Um mistério bufo, um poeta russo, e toda a nossa desgraça a cantar pelos cantos de um centro aos prantos pelas décadas de abandono. Cena sobre cena. Pela porta da igreja sai uma moça pintada. Uma palhaça sagrada, uma espécie de santa da noite em chamas. Uma entidade sagrada e profana do teatro.
Batom vermelho na boca da noite. Uma muralha de tecido cobre o corpo do circo. O chapéu voa junto ao vento. Notas, moedas, santos de eleição e um grito seco, pra dentro. O homem invisível, naquela praça enraizado desde que descobriu não ser gente, havia reivindicado seu eterno papel: o de ser humano isolado em seu próprio esquecimento.
Nem o homem invisível dele mesmo se lembra. Sua fala é o grunhido, sua aparência sempre a mesma. É difícil distingui-lo até mesmo do cimento. Ele é morto feito o piche. Se há mesmo a possibilidade de enxergar na cidade um ser vivo, ele não passa do excremento. Uma espécie de dejeto humano, infelizmente.
Ao teatro que vai à rua cabe a preocupação de compreender o espaço, os laços que abraçam a liberdade que ali faz festa, o brilho que insiste na seresta em devoção à lua. Tetro de rua é rito e, só por isso, passa longe de todos os artifícios que envolvem o negócio explícito e desforme que nos maltrata e corrói.
Todo pranto tem hora, como nos ensinou Cartola, e é inadmissível ao teatro ensurdecer, sozinho, diante do pranto do homem invisível. O teatro que lhe nega a possibilidade de existir é tão opressor quanto a vida que o tal espetáculo combate. O teatro está fatigado de atores e criadores que compreendem o mundo através de seu próprio umbigo, cheio de limbo. O princípio do teatro é outro, sempre, seja ele quem for.
O garoto de barba que arrota palavras de ordem em defesa dos oprimidos esqueceu-se que ali, diante dele, há um homem com motivos para ser visto. Diante daquele homem em vestes incompreensíveis, em contínua crise existencial por conta do destino, ao menos dessa vez o teatro passou batido. A ele, como sempre, diante de tudo, sobrou um eterno abismo.
Como dar voz aquele que não se compreende como indivíduo? Ah, teatro bandido que fecha os olhos aos paralelepípedos, que se cala diante do absurdo de aquele não estar vivente mesmo estando vivo. É preciso ao teatro ser uma luta perene contra os nossos próprios vícios. Os da alma e os do olhar.
Ao teatro resta o ofício de saber enxergar, para tanto basta ter olhos de ver e ouvidos de ouvir. Ao homem invisível resta o penar, o lamento de lutar para ser visto mesmo que esteja em foco, mesmo que seja por conta do grunhido insólito que insiste em surgir do profundo do ser.
O teatro passa. Acendem-se as luzes da praça. Os cabos de som começam a ser enrolados tal qual nossos problemas. A maquiagem borra a boca seca, gasta de tanta palavra que ainda não nos pertencem, por mais que tenham sido ditas.
O ônibus corta a avenida feito navalha urbana sem dó ou piedade de todos os santos que invadem seu caminho. Já o homem invisível permanece frio, com a boca aberta e alma faminta, na beira da sarjeta com o peito escancarado a gritar em silêncio pelos anos de esquecimento. Grita pelo sobrenome que lhe foi negado, pela história que nunca teve, pelo beijo esquecido naquele cimento quente.
A ele não foi dado cultura ou perdão. O único estado que conhece é seu permanente estado de abandono. Seu país é sua fome. Sua mãe? Uma histérica madrugada que guarda todo o perigo do mundo: a fome que nunca cessa e o medo da morte certa. A vida que ficou resignada somente à lembrança que já não possuí.
O homem invisível, diferente daqueles lindos meninos, não tem pressa, como não tem pressa aqueles que nunca tem para onde caminhar, pois já estão diante do próprio abismo. O homem invisível, diferente de nós, vive a olhar para o céu, à espera de um deus que insiste em não lhe notar.
Se a nós somente um ato heroico for possível, que lembremos sempre de todos esse homens invisíveis que tem por princípio o lamento e, como único direito, um futuro impreciso. O teatro que acredito está sim na rua, no colo perdido de um homem que nunca vimos, mas que está sempre por ali, a alimentar nossa culpa com seu eterno grunhido.
Que triste destino dessa nossa humanidade, pálida e esnobe diante de sua silenciosa presença.