Trocando Em Miúdos: Escrever sobre teatro é um exercício de crença. O entendimento dessa arte enquanto rito é um dos temas recorrentes nas análises cênicas contemporâneas. Onde se situa o teatro então diante deste contexto e qual a função de uma coluna que o aborde?
O papo por aqui é teatro! Escrever sobre o tema sempre me pareceu tarefa das mais complicadas. Como se debruçar sobre um acontecimento tão amplo e ao mesmo tempo tão efêmero? O teatro é filho do vento, expressão poética e única. Cada palavra dita no palco, cada gesto trabalhado, tudo isso se perde no espaço/tempo logo depois da ação. O espetáculo é algo único, impossível de ser repetido, por isso a ação teatral precisa ser entendida e vivenciada enquanto rito. Sendo assim, fica claro que este que vos escreve enxerga no “fazer teatral” a sua religião, e que diante disso o único deus possível é Dioniso: aquele deus misterioso escondido nas folha da videira, como disse Baudelaire. Dito isso, vamos em frente.
Sendo o teatro puro movimento, é imprescindível que deixemos de lado as armadilhas analíticas e vislumbremos o horizonte desse espaço com os olhos livres. É impossível carregar paixões através de meandros academicistas. O caminho a ser percorrido há de ser desbravado conjuntamente, como em um jogo de cena. Para tanto, é preciso assumir o nosso protagonismo diante do mundo. O teatro se reinventou e enxerga no público um novo parceiro de cena, a plateia deixou de ser passiva e assumiu seu corpo atuante na ação teatral. Ao escrever sobre teatro acredito que é preciso seguir a mesma direção, o leitor deixa de ser um mero receptor das ideias aqui compartilhadas e passa a tomar partido nos rumos a serem trilhados. Antonin Artaud, um dos xamãs de nosso tempo, já deixou claro que é preciso vivenciar a experiência cênica em sua totalidade, até não ser mais possível distinguir obra e vida: “A tragédia no palco não me basta, vou transportá-la para a minha vida.”
“Na encruzilhada do debate teatral todo caminho levará ao outro, e não é preciso apontar diretrizes nem mesmo fazer escolhas.”
Com o crescente avanço das ideias retrógradas no Brasil, principalmente por parte da juventude, é essencial que aqueles que acreditam na liberdade a defendam com unhas e dentes. Além de discutir o papel da arte, é preciso incentivar a criação. Cabe a nós a sina de protagonistas desta luta, a última palavra do desespero e da revolta, mesmo que isto nos entregue à maldição de fantasmas do passado que insistem em nos assombrar a retina. O ato teatral não fica fora desse caldeirão, tampouco o ato de se debater as ideias e as produções teatrais. Existem tempos em que omissão é conivência, por isso é louvável a criação de pequenos vietnãs da cultura, apud Jean-Luc Godard.
É com muita honra e certa apreensão, necessária a todo criador, que tomo este espaço e coloco meu corpo na roda para dar início aos trabalhos. Como no famoso jogo dos surrealistas, O Passeio à Deriva, é preciso se entregar ao acaso e buscar novas possibilidades de encontro. Na encruzilhada do debate teatral, todo caminho levará ao outro, e não é preciso apontar diretrizes nem mesmo fazer escolhas, a errância é própria daqueles que se reinventam, daqueles que ardem em busca de novas possibilidades e nunca bocejam. Que a luminescência da embriaguês sagrada de Dioniso guie-nos pelo vale do frenesi cotidiano.
Tragam velas!