Quando aceitei o fabuloso convite de escrever sobre teatro, decidi que faria o possível para fugir ao senso comum. Não que exista de minha parte a busca incansável pela ruptura em relação aos colegas que escrevem sobre o assunto, pelo contrário, a decisão parte do reconhecimento de minha limitação em alguns aspectos. É impossível não notar que, ao escrever sobre teatro, acabo agindo como em tudo na vida: vivo, e isso é algo absolutamente doloroso, pelos olhos embaçados da paixão.
Não tenho, e não vejo problema algum em assumi-lo, o distanciamento necessário para exercer a crítica teatral que considero adequada. Sempre que me dirijo a um espetáculo, o faço inundado de ansiedade e apreensão. Jamais serei daqueles homens que carregam nos grossos aros dos óculos postulados universais e unânimes sobre o fazer teatral. Tenho, e isso me desqualifica para exercer a crítica teatral semanalmente, os encantos do palco preso na face brutalizada pelo cotidiano massacrante. Encontro em cada peça aquilo que a vida teima em me negar. Somente esse motivo já bastaria para me eximir de qualquer obrigação analítica em relação a qualquer espetáculo. Por isso, decidi fazer deste espaço um reduto de sonhos e possibilidades.
Escrevo por aqui sobre o que me comove e move, sempre tentando despertar nos leitores o interesse e, principalmente, a vontade de se entregar às forças sublimes que regem essa imprescindível forma de expressão e renovação da própria vida. Às vezes obtenho sucesso, às vezes me isolo diante do fracasso, mas continuo firme, guiado pela certeza do caminho que escolhi traçar pelas ruas obscuras do destino.
Já escrevi aqui sobre teatrólogos, indiquei leituras, comentei espetáculos, apresentei novos grupos e assumi posições, sempre tentando manter um diálogo com aqueles que se interessam pelas linhas tortas que aqui derramo. Com o tempo, buscando novamente a fuga da facilidade, é preciso parar e repensar algumas questões. Somos atormentados, subitamente, pelo fantasma frio do comodismo e eis que é preciso rebolar, meus amigos. É preciso saber se reinventar, sempre, e é por isso que iniciarei por aqui uma nova série que, mesmo para este que vos escreve, é algo absolutamente nebuloso ainda: Os terreiros de Dioniso.
A série nasce da necessidade de corrigir uma heresia que havia passado batido por esses olhos cansados.
A série nasce da necessidade de corrigir uma heresia que havia passado batido por esses olhos cansados. Falar sobre algo que sempre me encantou, mesmo antes de me reconhecer através dos palcos. Dedicar um tempo de estudo e atenção aos teatros do Brasil, falando de seus espaços físicos propriamente. Explico-me: desde pequeno me encanto com edifícios e construções. Traços de concreto e aço, arranha-céus, pequenos espaços; passava, e confesso que ainda passo, muito tempo admirando o erguer de novas edificações na cidade. Sinto-me ainda hoje insignificante diante da grandiosidade de algumas delas.

Lembro-me, por exemplo, do primeiro encanto em relação a teatros. Eu era uma criança, não consigo precisar minha idade, já que abusos e desgostos me gastaram a memória, e fui ao teatro pela primeira vez. O local escolhido pela escola foi o Centro de Convivência Cultural de Campinas, o famoso CC, e confesso que ao chegar diante do prédio achei aquilo extremamente sem graça. Ao entrar no salão veio o primeiro impacto: ali, diante de meus olhos maravilhados, estava um lustre magnífico que refletia toda a beleza do mundo. Paralisado, entrei embaixo do pesado amontoado de lâmpadas e ali fiquei até ser arrancado à força por uma daquelas professoras que preferem utilizar os punhos ao invés do diálogo.
Nada mais importava. Não me lembro da peça, que foi também a primeira a que assisti, não me lembro dos amigos ou do lanche depois do passeio. Encantava-me aquele lustre a ponto de virar uma pequena obsessão. Ainda hoje quando entro no CC sou tomado por um sentimento de pequenez diante do deslumbre que é aquele lustre, hoje corroído pelo tempo e pelo descaso público.
Pode ser que a idade ou o desânimo tenham despertado a saudade da infância através da lembrança daquele ilustre lustre. O fato é que pretendo dedicar, de acordo com o tempo, um espaço por aqui para apresentar e reverenciar alguns prédios que fazem parte de minha história, e outros tantos que fazem parte da história de nosso teatro. Desde já, é preciso deixar claro que não existe de minha parte nenhuma pretensão além do delírio. Enxergarei os espaços, seus detalhes e sua história, através de sua poesia e de seu viés onírico. Aqueles que pretendem encontrar por aqui tratados sobre arquitetura podem tirar o cavalinho da chuva. Não é só a falta de conhecimento que me impede de realizar esse tipo de análise, a verdade é que o encanto passa longe da lógica e das regras, e é a ele que dedicarei esses novos escritos. A limitação geográfica é um obstáculo a ser vencido, por isso iniciarei a série escrevendo sobre aqueles espaços que conheci pessoalmente e com os quais guardo recordações e histórias. Todo teatro guarda segredos esculpidos em seus tijolos desgastados pelo trabalho dos anos. Essa série tem por objetivo resgatar essas histórias esquecidas no canto escuro de um tablado silencioso e trazer à luz a poesia de concreto que emerge desses espaços mágicos que, muitas vezes, passam batidos por nossas íris domesticadas pela rotina.
Vamos, pois, adentrar as morada de Dioniso e nos lambuzar com o doce mel de sua vida errante.
Evoé!