Pertencimento, identidade, preservação, valorização, diversidade cultural. Para olhos e ouvidos colonizados, o texto de Daniel Munduruku, publicado em 2002 pela Global e reeditado pela Melhoramentos em 2018, pode parecer panfletário. E a bem da verdade, de todas as perspectivas possíveis de análise para o espetáculo Karaíba, encenado na Mostra Lúcia Camargo do Festival de Curitiba, esta é a que menos possui relevância.
Com atores e parte considerável da produção de origem indígena, o espetáculo viaja para um Brasil pré-colonial, reimaginando e reconstituindo uma nação que já existia antes da presença europeia.
Esse Brasil antes do Brasil é um simbólico ato de resistência.
O universo descrito por Munduruku, um dos maiores autores e pesquisadores indígenas do país, é um convite ao mergulho nessa complexidade representada pela pluralidade de povos que aqui habitavam e ainda habitam – para desprezo de uma minoria.
Esse Brasil antes do Brasil, levado para os palcos com dramaturgia de Idylla Silmarovi e direção de Rafael Bacelar, é um simbólico ato de resistência, que borra as fronteiras de passado e presente num contínuo esforço de descolonização do olhar e do pensamento.
Danilo Canindé, Jéssica Meireles, Ludimila D’Angelis e Yumo Apurinã, atores de origem indígena, são palco e texto, alma e essência, dor e resistência. São parte do imaginário que tomou forma como Pindorama, resultado de tramas de violência inexorável, cuja visão eurocêntrica chamou de Novo Mundo.
Karaíba, essa alma indígena sábia, que cultua os sonhos e a imaginação, entrelaça a vida dos povos que tornaram o chão em terra. Sua visão permeia mais do que a narrativa, mas relatos de profecias que muitos pajés tiveram a respeito da chegada (devastadora) do homem branco sobre estas terras.
Karaíba, peça e personagem, queimam a retina do espectador, ecoam a complexidade da existência desses povos, suas subjetividades e hesitações. Evidenciam a vitalidade de suas culturas e, pelo jogo criado pela direção e opções criativas de Bacelar, ignoram as limitações das regras em sociedade, fruto das transformações de 523 anos.
O espetáculo, como se espera de obras artísticas de temas espinhosos, é propositalmente aberto. Porque ainda que as elucubrações de Karaíba, expressas em sonhos e imaginação, falem do outro, elas dizem (e refletem) um tanto do eu.
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