A vida tem, muitas vezes, um tom de desastre. Parecemos desolados diante das impossibilidades as quais estamos submetidos e, às vezes, sentimos que seguir adiante é uma tarefa hercúlea. A verdade, que nem todos gostam de admitir, é que ainda insistimos na existência sem ter muita certeza dos motivos, como sentenciou Schopenhauer. Afinal, se para existir é preciso estar vivo, a própria vida passa a ser uma sentença da qual não podemos fugir. Enquanto permanecermos vivos, é preciso ter crença na existência.
Isso, ou esse estado, é mais comum do que parece. Acontece comigo, com você e até com aquelas pessoas que julgamos felizes, se é que a felicidade é possível atualmente. Ora ou outra todo ser humano encontra-se entre a cruz e a espada sem saber ao certo pra onde deve seguir. E seguir, camaradas, não é uma opção e sim uma imposição. Foi-se o tempo do ócio, agora vivemos os negócios de nosso tempo enquanto esperamos férias, feriados e a paz que nunca chega.
Pedro de Aguiar, como todos nós, é desses que não sabe pra onde está indo, mas entende que é preciso tocar o bonde. Dia após dia caminha com o olhar perdido em seu próprio horizonte, seguindo feito gado o caminho rotineiro de todo dia até a estação de metrô. A contragosto chacoalha na linha vermelha, em um vagão abarrotado, até o seu destino. Ali, em uma sala refrigerada entupida de tristeza e divisórias, Pedro engaveta seus sonhos em nome de uma existência vazia. Durante o horário comercial, o garoto que almeja os palcos se encarrega da digitação de “conhecimentos” de embarque, os famosos AWB, para uma empresa aduaneira. Da janela, que emoldura o caos reinante na Avenida do Estado, o homem enxerga um mundo que não o pertence. Há alguém, um patrão, que define a vida de Pedro: seu horário de acordar, comer e de dormir, por exemplo. Ao toque de libertação da Ave Maria, Pedro segue a pé, por falta de grana, até a Consolação, onde guarda um sonho cada vez mais violentado: o teatro.
Pedro conhece a Praça Roosevelt, mas não faz parte de seu condado. Seus heróis cênicos, que passeiam pelo local, não têm conhecimento sequer de sua existência. Pedro é um número perdido em um holerite. Nunca brindou com o filho do Chico Anísio no Baixo Gávea, tão pouco teve chance de confraternizar com artistas na histórica Boca Maldita de Curitiba. Não, sempre foi esquecido pelo lado glamouroso de seu sonhado ofício e assim permanece. Afora tudo isso, dessa maldita sina de esquecido, o rapaz convive com outro mal que nos cala profundamente: a camaradagem artística perene.
No entusiasmo de fazer parte desse seleto grupo indigesto, Pedro se submete a condições de trabalho nefastas, como trabalhar em troca de visibilidade e de dar o sangue, que coalha, em busca de likes. Pedro, que poderia ser Caio ou Marcelo, é a cara do jovem ator brasileiro. Um artista que vive à mingua, preso a um futuro que nunca chega e que só diz respeito aos interesseiros que dele se aproveitam, ou a ele mesmo em seu eterno desassossego. Por isso, o tema da coluna dessa semana é a saga desumana de Pedro.
Aqueles que se aventuram pela selva artística tupiniquim sabem que o jogo não é fácil. Vivemos em busca de apoio, de chamego, de parcerias e de alento. Precisamos fazer do couro surrado uma carapaça contra o desespero, uma reafirmação constante de nossos desejos em detrimento do medo e da covardia. O grande problema é que o estado de Pedro não é apenas um estado, é o dia-a-dia do artista recém-descoberto à mercê de seus senhores idolatrados.
Não é de hoje que reclamações como essa ululam pelos cantos do globo. Eu mesmo, muitas vezes, me submeti, e ainda me submeto com prazer, a trabalhos não remunerados pelo simples fato de que é preciso, também, preservar a paixão na brutalidade da rotina. O problema é que, em muitos casos, a paixão está subserviente às vontades de um homem sem escrúpulos que vive de iludir e se aproveitar daqueles que vivem de sonhos: os homens que mastigam encantamentos.
Em tempos onde o Ministro da Cultura chama a atenção por selfies ao invés de propostas, não é de se estranhar que o Supremo Tribunal Federal seja um ninho de ratos.
Há quem diga, por exemplo, que existe uma espécie de escravidão artística onde produtores, e é claro homens de teatro, aproveitam-se da boa vontade, e da ilusão, de alguns para conquistar uma “mão-de-obra” barata e ingênua. Não chego a tanto. Creio que desconheço qualquer produtor de teatro com inclinações para o papel abjeto de um Ronaldo Caiado, notório senhor de escravos e hipócrita defensor da legalidade no Senado. Tampouco contamos com a defesa de um homem como Gilmar Mendes. O sapo boi que veste toga defendeu com altivez o senador João Ribeiro (PR-TO) no processo em que foi acusado de possuir escravos em sua fazenda. Para o bufanesco e estúpido ministro do Supremo a precariedade, leia-se escravidão, é algo absolutamente natural em trabalhos rurais. Em tempos onde o Ministro da Cultura chama a atenção por selfies ao invés de propostas, não é de se estranhar que o Supremo Tribunal Federal seja um ninho de ratos. Os bichos escrotos deixaram o esgoto para assumir cargos de notoriedade nacional.
Pedro, no entanto, vive dias menos gloriosos. Seus abusos não são julgados e sim assimilados. A prática que “escraviza” Pedro através de seus anseios é objeto de análise. Segundo Daniel Almeida, iluminador, essa condição não é privilégio de nosso personagem. O próprio Daniel trabalhou muito, gratuitamente, em busca de serviços remunerados. O iluminador acredita que essa condição “amadora” é fruto de uma “sociedade de vitrine”, onde aqueles que já se estruturaram no mercado de trabalho, e que por motivos diversos não conseguem sobreviver dignamente de seu ofício, oferecem espaço em troca de mão de obra. Uma troca justa, completa Almeida. A atriz Amanda Albuquerque já é de outra opinião. Segundo ela “a falta de fiscalização dos órgãos competentes somada à ansiedade dos jovens atores resultam na precariedade da condição do profissional de teatro, uma espécie de mais-valia artística que só interessa àqueles que veem no teatro a possibilidade do lucro”.
A verdade é que entre opiniões e delírios de carreiras já estabelecidas, fica essa vontade mal resolvida de quem almeja abraçar o teatro e redescobrir a vida. Pedro apesar de tudo segue seu rumo. Bate seu cartão na empresa e devora a bolacha que carrega no bolso. Sorri. Sorri como quem sorri diante do absurdo. Sabe das dificuldades que envolvem sua escolha e sabe também que tem poucos, ou quase ninguém, ao seu lado. O homem que busca viver o teatro sobrevive guardando nos lábios a próxima fala: um grito de insatisfação que há de ensurdecer a república do teatrólogo que devora crianças e arrota exploração.
Pedro desconhece a razão, mantém-se de pé por pura teimosia, com a certeza nos olhos cansados de que é possível, ainda, ver poesia na vida, mesmo que seja através de um teatro que lhe nega tudo, inclusive a rebeldia.
Enquanto eles enchem o bolso, nós esvaziamos a alma. E que pena eu sinto desses pobres diabos que insistem em gargalhar, entre drinks e prestações de contas, da má sorte de Pedro. Mal sabem eles que aquele garoto, entre lágrimas e desespero, em um escritório abarrotado, guarda toda a vontade de potência que vive naqueles que não se entregam.
Se assossegue Pedro. Quando tudo chegar ao fim, eles terão apenas dinheiro e você, camarada, será detentor de toda a beleza que o mundo esconde dessa gente que eu tanto desprezo. Pedro, leve contigo essa força que nunca cessa, que eu carrego daqui, no peito, sua história que há de ser revista.
Que o mundo lhe aguarde e que o seu palco lhe guarde desse mundo!