A relação do artista com a própria existência é, frequentemente, tema de análises e estudos, sejam eles dedicados aos mistérios da psique humana ou uma maneira simples de saciarmos nossa ânsia em consumir a intimidade alheia. Se mastigamos vidas em consultórios médicos enquanto financiamos a nossa morte através de “consórcios” promovidos por empresas privadas, não é de se estranhar que até mesmo os mais radicais pensadores de nosso tempo, muito deles em absoluto desespero e isolamentos impostos, tenham tido as vidas vasculhadas com cuidado durante os anos.
O mercado que desvenda as preferências sexuais da ultima ninfeta do reality é o mesmo que desvenda os motivos do suicídio de Hemingway. Do prazer à tragédia, seguimos catalogando nossos abismos e comercializando nossos mistérios. Os exemplos usados foram propositalmente opostos, afinal, se já estamos condicionados a vasculhar a superficialidade do jornalismo de celebridades, no caso dos ditos “gênios” o que nos encanta é, quase sempre, a tragédia na qual a grande obra está diluída. Seria o artista, esse eterno incompreendido, um ser humano fadado à loucura? A quem interessa essa vida de migalhas à qual alguns artistas estão eternamente submetidos? O artista bem sucedido é sempre um vendido?
Essas e outras questões são levantadas frequentemente em qualquer ambiente onde a arte seja o foco, de mesas de botequins a simpósios concorridos. É evidente que seria absurdo generalizar qualquer ponto dessa discussão sem querer parecer raso ou descuidado com análises ou afirmações precipitadas, afinal, a vida, mesmo indissociada da própria obra, guarda particularidades e mistérios que nem mesmo quem os vive é capaz de desvendar por inteiro. Cada vivência é única e o efeito dessa vivência em cada ser humano também o é, por isso a única verdade a ser defendida aqui é justamente a ausência da mesma.
Há algumas semanas, estive em um debate sobre a vida e obra do ator, diretor, poeta e ensaísta Antonin Artaud. Ali, mergulhamos no mar de encantos que compõem o legado do artista francês. O mergulho envolveu, evidentemente, o horror de sua vida instável. Artaud, como Lima Barreto, foi enclausurado em manicômios por conta de seu desespero, e, evidentemente, por conta dos efeitos desse estado em sua vida pública. Entre os devaneios surrealistas de Artaud, todos imprescindíveis, e seu estático estado de exilado eterno, o trecho de uma carta do poeta foi responsável por uma acalorada discussão.
Destaco aqui o trecho em questão:
“Eu sou um fantasma, e o senhor, um homem de negócios. O senhor será perpetuamente diretor de teatro e eu, um pobre ator, que não teve sucesso, apesar de algum talento que se lhe queira reconhecer. Eu preciso ganhar meu pão, preciso comer, eis minha situação. Eu invoco a amizade que me testemunhou e que já passou para o limbo de suas antigas preocupações. Só lhe peço trabalho. Dê-me qualquer coisa para fazer, não importa o que: um papel, um lugar no seu escritório, até mesmo um emprego de varredor público. Cuspo no meu espírito (…) As preocupações, a fome talvez, provocam maus sonhos (…)” (Carta sem data de Antonin Artaud a Jacques Hébertot).
Através das palavras de Antonin Artaud é possível refletir a respeito do papel do artista em uma sociedade que, diversas vezes, acredita ser vantajoso jogá-lo à própria sorte diante da corrente inconstante que rege a vida.
O trecho em questão não serve de ponto final, tão pouco representa um hiato na trajetória do artista. Através das palavras de Antonin Artaud é possível refletir a respeito do papel do artista em uma sociedade que, diversas vezes, acredita ser vantajoso jogá-lo à própria sorte diante da corrente inconstante que rege a vida. Se o fracasso é condição indispensável àqueles que almejam o sucesso, na trajetória artística a impossibilidade, aliada aos empecilhos orquestrados pela nossa burocrática condição passiva, é uma espécie de “estado permanente de trabalho”.
Sim, o trabalho artístico pressupõe a não realização, é preciso lidar com isso para se levar qualquer plano adiante. Somos submetidos a um aborto eminente sempre que nos propomos à criação. Por isso, por diversas vezes, o trabalho do artista não passa de juntar migalhas diante do impossível. Mas a quem servem essas migalhas distribuídas em tom de caridade?
Em sua peça mais famosa, O Rei da Vela, Oswald de Andrade utiliza-se do personagem Pinote, um escritor, para abordar a questão. Segundo a Abelardo I, ao comentar sobre a personagem, é preciso deixar os intelectuais e artistas à míngua, afinal, o ofício do conhecimento pressupõe revolta, além disso a burguesia precisa de lacaios astutos, como bem define o Rei da Vela.
Tanto o “Momo” francês quanto o “bufão” tupiniquim estavam submetidos a forças que ainda hoje encontram-se em evidência. Forças ocultas, que na maioria das vezes utilizam-se de meios legais e imorais para controlar, vilipendiar e sucatear a condição do artista diante da sociedade. Ao artista, diante do cenário absurdo, cabe mais uma vez a insubordinação, esse traço anarquista e libertário da personalidade de qualquer criador. Prova disso é, por exemplo, o incontrolável aumento de iniciativas artísticas independentes: de espetáculos a livros recém-lançados.
O detrimento do artista não é próprio de nosso tempo, sobram exemplos na história de homens transtornados, consumidos por uma chama que não cessa diante de um mundo frígido que não a compreende. Estamos fatigados de migalhas jogadas a esmo, seja por desdém ou por controle. A república dos pombos precisa se atentar aos restos que tem devorado enquanto banquete.
O artista não precisa de favores, mas anda carecendo de possibilidade e coragem para se livrar das amarras às quais está submetido.O único patrão a quem servimos é o delírio, e sua única exigência é o comprometimento irrestrito com os seus encantos. Aqui, com a barriga cheia e o espírito vazio, continuamos a vasculhar migalhas disformes ao invés de saquearmos os obscenos jantares do poder. Até quando resistiremos de pé diante desse anêmico cenário?
A resposta para questão não se encontra nas palavras de Artaud e de Oswald, mas sim na decisão que tomaremos diante da mão que nos alimenta com suas sobras.
Qual carne seu dente rasgará daqui pra frente?