Todos nos sentimos sem ar, sufocados. Estamos sufocados diante da vida, dos medos, desse destino feito de obrigações e desespero ao qual estamos submetidos. Sufocados e perdidos pela própria existência. Todos temos o peito calado, pressionado. Pressionado por amores desfeitos, por sorrisos partidos, por aquela lembrança perdida no espaço-tempo que emerge na memória em um dia qualquer. Pressionados e falidos por pura insistência. Todos, sem exceção, encontram-se nessa busca desesperada por ar. Precisamos respirar! Respirar um ar que nos dilate não só o pulmão, mas também a crença no viver. Uma brisa leve que chega feito cura e, meio por acaso, anuncia a cessão de toda angústia, o fim de todo sofrer. Uma fuga desse estado lastimável humano, demasiadamente terrível e insano.
Há no colo da humanidade uma falta de ar crônica causada pelo excesso de tédio, pela escassez da beleza. Alguns médicos do infinito diagnosticaram uma claustrofobia tatuada na nossa história. Um pânico crônico, uma ansiedade incurável. Até quando teremos oxigênio pra aguentar a dureza de nosso tempo? Quando poderemos expirar toda essa poesia presa na garganta? A falta de ar patológica que cala nossos heróis também nos lega uma espécie de comprometimento pulmonar catastrófico, desses que matam sem matar, que nos sufocam pelo simples prazer de ver chorar. E foi assim, sem chão e também sem ar, que recebi a triste notícia sobre o encantamento de Sábato Magaldi, mesmo sabendo que até mesmo os heróis, vez ou outra, perdem a batalha do respirar por essa terra oca.
Sábato Magaldi foi crítico teatral, teatrólogo, jornalista, professor, ensaísta e historiador; mas acima de tudo foi um guerreiro. Um guerreiro incansável na linha direta de Dioniso. Um assombro do teatro Tupiniquim que enxergou a potência cênica dessa terra desgovernada e lutou em defesa dos palcos de Pindorama. Imortal sim, mas por excesso de heroísmo, por insistência no ativismo, pela paixão cênica que hoje falta aos críticos, apud Maiakovski. E, é preciso dizer, nesse contexto pouco importa a academia e seus brasões lustrados com a arrogância do tempo, com a insignificância do reconhecimento acadêmico.
Se Machado de Assis, nosso anjo mestiço das letras, definiu o ideal do crítico, não seria exagero dizer que, ao menos no plano teatral, Sábato Magaldi foi a personificação desse ideal.
Seu único uniforme foi a coragem. Sua roupa de gala o talento, aliado a um deboche camuflado de elegância. A única cadeira cativa possível para o gênio encontra-se em todos os teatros, naquela sala escura onde reconheceu a própria vida e ao menos ali, tenham certeza, seu lugar será eterno. Sua cadeira permanecerá vazia diante de nosso olhos, mas absolutamente transbordante à íris da história.
Nascido Sábato Antonio Magaldi (1927-2016), o mineiro de fala mansa e olhar cativo formou-se em direito mas, logo aos vinte anos, rendeu-se aos encantos do deus do vinho através dos tortos olhos de Sartre. A náusea seria pra sempre combatida através da magia do teatro e essa arte sagrada nunca mais seria a mesma depois de seus “versos” encantados. De Minas para o Rio, já crítico reconhecido, escreveu para o Diário Carioca em substituição a Paulo Mendes Campos. De lá, o homem-teatro tocou o barco pra São Paulo, onde trabalhou n’O Estado de São Paulo e no Jornal da Tarde. Ali aprendeu também, e por favor esqueçam a cronologia quando se trata de paixão, o ofício de professor. Lecionando desbravou mares e encantou a França reinventando Paris e Provence através de nossa herança pau-brasil.

ECA, ABL, SN. Transitou por todas as siglas, dinamitou, de certa maneira, todas as instituições. Foi, até que provem o contrário, uma poética visão na empoeirada academia que nunca sacou de fato os encantos que guarda um palco. Responsável, junto a tantos outros, pela compreensão da revolução proposta pelo Arena, redescobriu Nelson Rodrigues, de quem foi íntimo amigo, além de ser o primeiro a render os merecidos elogios ao trabalho de Plínio, o que guardava em si os olhos doces e não o de espírito Salgado. Aquele mesmo tão esquecido: o Marcos. Rendeu-se à visceralidade do Oficina e forjou, à sua maneira, própria dos gigantes, um novo panorama para o teatro. Cem anos dessa arte seriam pouco para compreender, de fato, o estrago divino causado pela monstruosa pena de Sábato.
Como bem disse o crítico e teórico Jacó Guinsburg, “No processo renovador, um nome que veio a impor-se como dos mais representativos foi o de Sábato Magaldi, seja pela intensidade de sua militância jornalística, seja pela envergadura de sua contribuição ensaística.” Estamos, como se pode ver, diante de um caso de amor ao teatro, como o próprio Sábato deixou claro certa vez ao defender um comportado mais ético para os críticos: “é que julgo o amor pelo teatro e a boa fé como as primeiras qualidades da função de crítico”. Se Machado de Assis, nosso anjo mestiço das letras, definiu o ideal do crítico, não seria exagero dizer que, ao menos no plano teatral, Sábato Magaldi foi a personificação desse ideal.
De todas as obras de Sábato, em sua maioria imprescindíveis, talvez a maior delas não faça parte de um livro, tão pouco foi escrita ou declamada pelos palcos. Assim como as grandes poesias adormecem no inconsciente dos poetas massacrados pelo mundo e pelo absinto, a grande obra de Magaldi jamais figurará em qualquer biblioteca do mundo. Ela vive no olhar de fogo daquele garoto que encontra uma razão para viver através da boca pálida de uma personagem qualquer. A grande obra de sua vida, Sábato grafou no próprio peito, a sangue e poesia, na eterna luta pelo reconhecimento de uma arte que se reinventa no ventre puro da loucura. Sim, somos todos loucos, alucinados pela possibilidade de fazer do mundo um lugar minimamente habitável através do sonho que reside em todo teatro. Da loucura de ser artista em terras tão ingratas.
É preciso tomar fôlego para seguir adiante, mesmo quando a falta de ar já causa-nos espasmos de desesperança. Se estamos submersos em desespero e lágrimas, que a obra de Sábato nos oxigene ao menos os músculos, assim teremos força para carregar o peso de seu legado.
Obrigado, mestre!