Há algumas semanas, a cultura vem estampando as capas dos principais jornais do país, figurando a maioria dos noticiários televisivos e sendo discutida em todos os cantos: das mais imundas mesas de botequins às mais esterilizadas master class tupiniquins.
A tal “pasta da cultura” anda em alta e o motivo dessa popularidade repentina causa-nos orgulho, mas não trata de nenhuma grande guinada, resolução ou conquista. Aliás, basta uma análise rasa para percebermos que, na verdade, a cultura está em voga pelos mesmos motivos de sempre: seu sucateamento e o recorrente, e revoltante, descaso geral. O que mudou, ou ao menos parece mudar, é a nossa passividade diante desses descasos e abusos.
Toda mudança faz parte de um processo, e nem sempre as coisas mudam de maneira tranquila. Muitas vezes é preciso estraçalhar as cucas, e as vidraças, para que as coisas saiam do lugar. As ocupações dos espaços vinculados ao Ministério da Cultura, que acontecem sistematicamente desde o dia 17 de maio, e chegaram ao seu ápice hoje, com a tomada da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, sediada na famosa Avenida São João, são o reflexo da insatisfação da classe artística e o retrato da incompetência dos nossos governantes. E se é fato que os manifestantes são a pedra no sapato do atual governo, os estilhaços da ação dessa pedra vão rasgar as escamas de muito peixe grande por aí.
O assunto que roda os cadernos culturais de todo o Brasil atualmente não poderia deixar de dar o ar da graça em nosso espaço. Apesar de não se tratar do tema proposto pela coluna, o teatro, compreendemos que, diante da atual situação política brasileira, o futuro da liberdade, e consequentemente de todas as artes, entre elas as cênicas, depende do sucesso e das reivindicações dessas ocupações.
É certo que nem sempre a guerra traz a paz, prova disso é o fundo do poço onde a humanidade agoniza enquanto se extingue em batalhas tão ignóbeis quanto seus motivos, mas, diante da esquizofrenia geral da nação, não podemos negar que um pouco de ação e muito de ousadia ainda fazem um bem danado ao espírito. Se a eles cabem os crimes e as canetadas obscenas, a nós resta toda essa raiva entalada na goela e a certeza de que não nos curvaremos às vontades desses senhores de engenho que se lambuzam diante da nossa miséria.
Como política e cultura estão aí, no dia a dia da população, não é de se estranhar que a iniciativa não trate de uma questão específica. A coisa é plural: artistas, movimentos sociais, estudantes, servidores públicos e populares se uniram para resistir aos abusos do governo e de seus capangas que atentam contra a nação.
Nada de baderna
Em conversa com manifestantes, pesquisando a respeito na internet ou buscando informações através de atos é possível compreender que tratar as ações como baderna, como têm feito alguns políticos, é de uma desonestidade tremenda e de uma cretinice absurda. É claro que tentam, com ajuda de alguns veículos de imprensa, deslegitimar as ocupações, no entanto, tal esforço só deixou claro o modus operandi deles. A coisa é absolutamente organizada e baderna, palavra inclusive simpática a este que vos escreve, não se vê por ali.
Cada ocupação tem sua rotina e suas regras, imprescindíveis para a convivência e resistência.
Cada ocupação tem sua rotina e suas regras, imprescindíveis para a convivência e resistência. Algumas têm um caráter político claro: rodas de discussões sobre políticas públicas, palestras a respeito da situação política, discursos inflamados. Essas têm claramente uma liderança mais “partidária”, com preocupações e discursos a respeito da sempre possível fusão entre os Ministérios da Cultura, Educação e Esporte, por exemplo.
Outras ocupações, por sua vez, parecem mais livres, como o foram as ocupações dos estudantes nas escolas públicas. Nessas, há também uma rotina, no entanto, percebe-se que, além das famosas pautas, há momentos para se discutir outras possibilidades de vivência, menos práticas e urgentes, como, por exemplo, questões relacionadas ao meio-ambiente e ações de “terrorismo poético”. Essas parecem possuir uma descentralização maior em relação à liderança, com representantes de movimentos sociais diversos e geralmente muitos artistas.
Outras ainda são absolutamente festivas e quando se chega há sempre cantoria, saraus, encontros. Existem pautas específicas, é claro, mas há também palavras de ordem comuns a todos, #DiretasJá e #ForaTemer são, de longe, as mais populares.
O fato é que cada zona de resistência tem, à sua maneira, buscado uma adaptação ao estado de vigília necessário. Pode parecer bobagem, no entanto, basta ter olhos de ver, e ouvidos de ouvir, para perceber que a coisa no Brasil é séria e caminha a passos largos para a opressão violenta: censuras, fechamentos de espaços, proibições e prisões arbitrárias. As ocupações culturais devem ser acompanhadas de perto por diversos motivos, e o principal deles é a lição de convivência e a sensação de que juntos somos, enfim, mais fortes.
A noite, muitas vezes, parece escura e traiçoeira, como um palco antes do terceiro sinal. A sensação de pequenez é gigantesca, o coração palpita no peito e um nó seco se forma no fundo da alma. No breu do desconhecido estamos sujeitos a qualquer força, sabemos que a qualquer momento podemos sucumbir ao medo ou ao pânico, mas quando, enfim, mergulhamos em seus encantos damos de cara com a reluzente beleza da possibilidade e vemos que a escuridão é uma chance para recriar o nada.
Essa noite em todos os espaços ocupados o nada será confrontado. Na escuridão da madrugada é impossível não sucumbir às dúvidas e receios. Os cães de guarda do poder são covardes, sabemos, e costumam agir nas sombras. No entanto, é impossível que barrem o sol, que impeçam o verdejar da barra do dia. Com a chegada da manhã, haverá também um novo dia, uma nova possibilidade para transformarmos o nada e clarearmos, de vez, essa nossa história ainda tão turva e incolor.
Este jornalista se solidariza a todos os manifestantes que resistem bravamente em defesa de nossos direitos e deseja que a escuridão seja passageira e que nada, e nem ninguém, nos tire o direito à liberdade. Resistir é preciso!