“Agradeço, hoje, a visita de Vida que você me fez e a sua bondade, e os seus olhos, e o seu sorriso de criança. E me fico pensando na vida das naus que partem deste porto de pedra, que se vão para os seus destinos pela costa, pelas enseadas, um amor em cada porto, um porto em cada trecho de areia, e o sonho que perseguem com as suas velas brancas abertas aos ventos, brancas velas de alvíssimas aves, o olhar audacioso bicando a cortina do horizonte. O mais, sim, o mais é a viagem”
Patrícia Galvão
Na última quarta-feira, 28, a Cia Bravia estreou a sua mais nova produção, Das que ousaram desobedecer. O espetáculo, que teve apresentação única no mês de julho e entra em cartaz em agosto, foi apresentado ao público através do YouTube e revisita a ditadura militar a partir das histórias de resistência de mulheres cearenses.
As pesquisas para a realização do espetáculo começaram em março de 2020, pouco antes da pandemia, e envolveram entrevistas presenciais com Mario Albuquerque, da Comissão de Anistia, e sua irmã, Neidja Albuquerque, além de conversas virtuais com mais de dez mulheres cearenses que resistiram à ditadura militar entre as décadas de 1960 e 70, bem como pesquisas nos arquivos da Comissão da Verdade.
Com direção de Herê Aquino, que guarda na memória as investidas dos militares contra seu pai, Aquino, ex-preso político torturado e sequestrado pelo regime, e atuação das atrizes Liliana Brizeno, Marina Brito e Mariana Brizeno, Das que ousaram desobedecer busca o recorte feminino ao optar por contar a história dessas mulheres. “É preciso ressaltar que nós, mulheres, também estávamos na luta pela democracia no país”, afirmou a diretora do espetáculo.
Com duração de 60 minutos, Das que ousaram desobedecer é murro seco e necessário na boca do estômago de um país que insiste em desconhecer e repetir os erros e horrores de seu passado.
A prisão de mulheres e a violência do Estado
No início da década de 1930, a escritora e agitadora cultural Patrícia Galvão filiou-se, ao lado de Oswald de Andrade, ao Partido Comunista. Militante ativa, mulher de lábios de fogo e mãos de paralelepípedos, a artista modernista era porreta e não se intimidava diante de nada.
Não importava qual fosse o braço armado do Estado que atentasse contra sua vida ou liberdade, Pagu estava sempre disposta a ir até as últimas consequência em nome da resistência e da justiça. Foi por isso que, durante uma greve de estivadores em Santos, da qual participou ativamente, Patrícia Galvão foi presa pela polícia de Vargas, tornando-se a primeira presa política da história do Brasil.
A escritora foi libertada apenas em 1933, quando publica sua obra-prima, Parque Industrial, sob o pseudônimo de Mara Lobo. No mesmo ano, Pagu tentou o suicídio pela primeira vez.
O espetáculo da Cia Bravia presta homenagem, dedica memória e principalmente clama por justiça para cada mulher oprimida, seja no passado, no presente e, até mesmo, no futuro.
De lá pra cá, pouca coisa, ou nada, mudou. O Estado brasileiro ainda se impõe através da ameaça, da violência e do abuso. De Pagu a Marielle, de Helenira a Maria Bonita, sobram por aqui exemplos de mulheres que viveram na pele a clausura, que sentiram na boca o gosto amargo de sangue e deram a vida em nome de uma causa, de uma ideologia.
Através das histórias das presas políticas Ruth Cavalcante, Rita Sipahi, Rosa da Fonseca, Nadja Oliveira, Helena Serra Azul, Jana Barroso e Beliza Guedes, o espetáculo da Cia Bravia presta homenagem, dedica memória e principalmente clama por justiça para cada mulher enclausurada, oprimida, torturada, ameaçada, calada e assassinada seja no passado, no presente e até mesmo no futuro.
Segundo Rita Sipahi, uma das companheiras de cela da ex-presidenta Dilma Rousseff, “graves violações dos direitos humanos foram praticadas contra o povo brasileiro, através das intervenções nos sindicatos, nas entidades estudantis, nas entidades camponesas e naquelas da cultura, do cinema, das artes. A censura foi generalizada, o medo passou a vigorar, e o desmentido foi o que prevaleceu durante os 20 anos da ditadura civil militar”.
Infelizmente, mudam-se as táticas e os meios, mas permanece o horror, como sabemos, por isso é necessário deixar claro que tais violações continuam acontecendo diariamente e que, para o carrasco, não existe diferença entre um porão ou um beco escuro. A peça da Cia Bravia é um grito de revolta, não de socorro. É uma forma de demonstrar que é preciso revisitar o passado, mesmo que doído, para se transformar o presente.
Em épocas em que o presidente da nação tece louros a torturadores e senhores e senhoras de bem não tem medo de ostentar placas pedindo intervenção militar, um novo AI-5 e coisas do tipo, o espetáculo Das que ousaram desobedecer é uma boa maneira pra lembrar a essa gente que certas coisas não merecem perdão, tão pouco merecem esquecimento.