A expressão “literatura de testemunho” que, desde a década de 1990, é frequentemente usada no trato com obras literárias, além de contemplar a noção de um escrito que reflete e faz uso do próprio tempo para sua feitura, parece sempre designar a relação entre trauma, violência e literatura. A lista de obras e autores que assim são enquadrados é imensa e, em sua maioria, acabam sempre habitando um lugar que é resultado de uma tensão entre o poético e o político. Essa classificação abarca desde os grandes episódios mundiais, até experiências cuja abrangência é mais restrita.
No Brasil, os temas mais usados pela arte, nesse aspecto, segundo Cláudio Oliveira (em um artigo intitulado “Já Podemos Falar dos Nossos Traumas?” publicado na edição 199 da CULT), não são apenas traumas, como também elementos “fundantes” do país:
“A origem do nosso país, seja através do extermínio dos povos indígenas, seja pela escravidão dos povos africanos trazidos à força para cá, seja através da imposição de um Estado de Exceção pelos militares a toda nação, demostra que o Estado de Exceção não é um caso de exceção, como quer seu nome, mas é a Regra, e o próprio Estado se funda a partir dessa violência original. O que funda o Brasil, como Estado, não é a instauração de Lei, do campo da Legalidade, mas a instauração de uma violência constituinte, seja ela contra os índios, contra os negros ou contra os presos políticos.”
É esse o principal ponto de vista para análise de obras tais como a de Bernardo Kucinski, K. – talvez, atualmente, a com maior projeção – um livro em que, nas palavras do autor, “tudo é invenção, mas quase tudo aconteceu”. A forma de transposição das experiências, das questões, dos universos relacionados aos mais variados casos de violência é uma discussão que envolve processos coletivos e absolutamente individuais de psicologias: do que se trata, exatamente, a narração de um trauma que, individualmente exposto, reflete uma nação, uma geração, um período? Ou, ainda, nas palavras de Antonio Teixeira: “Como tratar discursivamente esse dado bruto, irrepresentável do trauma, quando nosso discurso se apoia na tábua das representações socialmente compartilhadas?”
É interessante se atentar para a importância desses materiais. Não são livros de história, não são documentos, não são relatórios e não são somente “realidade” ou “ficção”. Eles são relatos carnais – não só em relação à violência física, mas porque são próximos, epidérmicos, resultados de uma memória do corpo, uma memória da carne – de eventos históricos e/ou coletivos. A discussão política e social de um país necessariamente exige uma trajetória, uma história e as últimas eleições e as suas repercussões em manifestações, por exemplo, talvez seja um bom exemplo disso. Por que, frente a nossa história, há quem cogite a volta de “intervenção militar”? Por que, frente a nossa trajetória, há quem se negue a ver o racismo? Por que, frente a nossa narrativa, o índio é figura estranha? Sem pretensões esclarecedoras e explicativas, materiais cuja origem são os “traumas”, podem nos ajudar a ter uma mínima noção do que eles causam particular e universalmente.

Autor: Eli Firmeza
Sem pretensões esclarecedoras e explicativas, materiais cuja origem são os “traumas”, podem nos ajudar a ter uma mínima noção do que eles causam particular e universalmente.
Fernando Bonassi foi quem escreveu O incrível menino preso na fotografia, peça que esteve em cartaz no Festival de Teatro de Curitiba, dirigida por Fátima Ortiz, com Daniel Valenzuela e Troy Rossilho no elenco, e que aborda a relação de um indivíduo com a ditadura militar brasileira. A dramaturgia propõe uma espécie de diálogo entre um menino “preso na fotografia” e a versão adulta dessa criança: é aí em que se explicitam as tensões de um Brasil em plena ditadura militar. O estranhamento existente com a ideia de nação e país, um sistema educacional fundamentado em rigidez e hierarquização, a instauração de um “evento especial”, a fotografia, a presença de um fotógrafo e a relação com o tempo são alguns dos materiais poéticos/políticos do texto. Esse indivíduo, em um contínuo movimento de retorno e projeção, tem na fotografia e no seu “momento” eternizado, uma origem para um trajeto que indica uma relação direta entre o “registro fotográfico” e a “apatia” de um homem.
A montagem curitibana explora a memória de três principais maneiras: pela palavra dita, pela palavra cantada e pela palavra escrita. Os elementos vão adquirindo significado a medida que há um discurso em construção, uma criança/um homem lembra e refaz o caminho até atingir a fotografia. Um processo que remete diretamente ao trauma, uma experiência impossível de ser significada no momento em que acontece, e que exige tempo para uma possível elucidação. A projeção de fotografias e de palavras e também a presença de um ator-cantor parecem indicar uma percepção afetiva das coisas, uma memória que surge em canção, em imagens.