O atual período de pandemia e quarentena, como sabemos, tem forçado a TV a adequar seu modus operandi. Já são mais de cinco meses de programação suspensa e, acima de tudo, de muitas reprises. A Globo, por exemplo, investiu pesado no filão das novelas e tem levado ao ar – em sua grade e em sua plataforma digital Globoplay – uma grande quantidade de folhetins marcantes. Alguns deles, inclusive, nunca haviam sido repetidos no clássico horário de Vale a pena ver de novo.
Diferente do que poderia se imaginar, os resultados, em termos de acesso e em audiência, têm sido bons. O sucesso de Êta mundo bom, por exemplo, é tema recorrente de debate. Afinal, o que faz alguém parar para rever uma história repetida, em que já sabe tudo o que vai acontecer? Há algo de nostalgia, de ligação emocional com a época da veiculação original? Ou o fenômeno se deve ao fato de que simplesmente não temos mais o que fazer durante o modorrento período de quarentena?
São muitas as questões, e elas foram abordadas com mais profundidade pelos jornalistas Maurício Stycer, Chico Barney e Debora Miranda em episódio do podcast UOL Vê TV. Nesta discussão, eles ainda se atentam a outro fenômeno bastante intrigante: a alta quantidade de reprises nos faz ver o quanto as narrativas “envelheceram” ao longo destes anos. Muitas novelas e séries (além de reportagens jornalísticas mesmo, como essa explicitamente gordofóbica do Jornal da Globo) que reassistimos mostram-se hoje claramente anacrônicas, ou seja, soam estranhas ou simplesmente erradas em tempos atuais.
Vejamos alguns exemplos. A própria novela Avenida Brasil, de João Emanoel Carneiro, de 2012, veiculada este ano no Vale a pena ver de novo, já apontava elementos que se tornaram “criticáveis” em oito anos. A relação entre Leleco (Marcos Caruso) e Tessália (Debora Nascimento), baseada num ciúme doentio do malandro, parece hoje inconcebível – que Tessália aguente por tanto tempo de forma relativamente passiva. A própria relação entre Jorginho (Cauã Reymond) e Nina (Debora Falabella), ela uma das protagonistas da novela, soa hoje como abusiva – algo que não se sinalizava no já longínquo 2012.
A TV, como uma indústria que produz bens culturais, criados por pessoas, é, na verdade, um reflexo do seu tempo.
Há ainda exemplos contrários. A novela Por Amor, de Manoel Carlos, exibida entre 1997 e 1998, girava em torno de uma mãe e uma filha (vividas por Regina Duarte e Gabriela Duarte). A filha, Eduarda – que sofre o ator de “amor” do título da novela, quando sua mãe troca os bebês que ambas tiveram para que Eduarda não descubra que seu filho morreu – foi decodificada, à época, como uma mulher extremamente mimada e chata. A personagem de Gabriela Duarte foi atingida por uma espécie de ranço nacional. A reprise da novela, em 2019, parece ter cativado uma nova geração de espectadores que agora torciam por Eduarda – não mais vista como simplesmente chata, mas uma mulher superprotegida que passa por uma transformação dura a partir de vários embates com pessoas que a manipulam e/ou abusam. Este texto, do portal Valkirias, traz uma interessantíssima análise de como Eduarda, com o passar de quase 20 anos, foi reconfigurada de chata para vítima, e sua mãe, numa perspectiva de “amor incondicional”, revelou-se como a verdadeira vilã, a sabotadora do crescimento da filha.
É claro que os exemplos seguem infinitamente. Poderíamos falar da construção em torno de Tieta, com seu tom algo moralista em torno do feminino como o causador de todos os males, tal como se Tieta fosse uma Eva, às torturas explícitas de pessoas escravizadas e à sexualização da mulher negra em Xica da Silva, da TV Manchete. É quase que regra que os discursos da ficção tendem a retratar aquilo que se entendia como “normal” em um determinado tempo – e, por consequência, envelhecem e podem ser contestados.
Mas vivemos em plena era do “cancelamento” em que nada parece sobreviver incólume ao julgamento que fazemos cotidianamente nas redes digitais. Levanta-se, então, a pergunta: devemos negar estas narrativas anacrônicas ao ostracismo? Por mais que tenhamos este impulso de criticar discursos que envelheceram mal, no fundo, eles só servem para nos mostrar algo fundamental. A TV, como uma indústria que produz bens culturais, criados por pessoas, é, na verdade, um reflexo do seu tempo, e seus produtos carregam as marcas do período histórico de quando foram criados. Mais útil que “cancelar” novelas ou reportagens é reconhecer que avançamos rumo à melhoria nestes discursos. O fato de que reconhecemos estes textos como anacrônicos é algo a ser celebrado.