Conforme já pontuei algumas vezes nessa coluna, entendo que a TV pode ser encarada como um retrato histórico do seu tempo. Cada programa, em alguma medida, guarda as marcas de uma época: só é possível de ser veiculado, com tais características, sem parecer datado, em determinado momento da história. Por isso mesmo, os programas que não se reinventam ao longo dos anos tendem a desaparecer.
Comento isso porque Amor & Sexo, atração da grade da Rede Globo desde 2009, parece um programa enigmático neste sentido. Ele é perfeitamente adequado ao seu momento histórico por representar um clamor por liberdade, pelo direito de falar abertamente sobre sexo e relacionamentos, sem moralismos ou tabus, levantando bandeiras fortes na sociedade como a do feminismo e dos direitos das minorias LGBTQ.
Por outro lado, Amor & Sexo é profundamente saudoso de outros marcos da televisão brasileira. Seu formato homenageia, muito claramente, o Cassino do Chacrinha, montando uma espécie de Carnaval no palco que busca promover a ideia do excesso, da liberação das amarras morais e dos comportamentos considerados inadequados durante o resto do ano. O que nos leva à pergunta: se o Cassino do Chacrinha era um sucesso estrondoso lá nos anos 70 e 80 (mobilizando, vale dizer, as famílias nas tardes de sábado), qual a função na cultura popular que desempenha hoje o Amor & Sexo?
O programa retornou à grade na semana passada, para a sua 11ª temporada, apostando na mesma fórmula: “jurados” bem-humorados (bem aos moldes do Chacrinha), competições nonsense, números musicais e discursos bem acentuados. No entanto, 11 anos depois de sua estreia, algo está diferente: o Brasil enfrenta uma espécie de onda generalizada de conservadorismo, atestada pelo resultado das eleições no primeiro turno, no qual cerca de 47% da população endossou um candidato que levanta a bandeira de uma suposta “tradicional família brasileira” e empurra à marginalidade todos os cidadãos que escapam dos modelos heteronormativos.
Pode-se dizer então que Amor & Sexo se tornou, neste ano, ainda mais provocativo, escandaloso.
Neste sentido, pode-se dizer então que Amor & Sexo se tornou, neste ano, ainda mais provocativo, escandaloso. Mesmo que não falasse diretamente a Bolsonaro (a temporada foi inteiramente gravada antes das eleições, conforme esclareceu Maurício Stycer em seu texto), o programa passou a soar claramente como uma resposta a essa onda, adquirindo um tom de resistência.
Por isso mesmo, o programa sinalizou uma temporada que deve abordar muito mais a diversidade cultural do que, necessariamente, sexo. Falou-se sobre racismo, sobre cotas raciais, sobre a diferença entre assédio e libertinagem, sobre a sexualidade feminina, sobre a importância cultural do funk, dentre vários outros assuntos. O tom varia entre o humor e um excesso de didatismo, uma necessidade de marcar o peso daquilo que se fala – que, se por um lado, pode tornar a mensagem mais acessível à população, por outro, faz o discurso que carrega soar algo maçante, professoral.
E nada pior que um tom professoral para falar sobre sexo. Isso ocorreu, por exemplo, numa competição em que pessoas anônimas tinham que dar uma “sarrada”: elas entravam vendadas em um túnel onde deviam “sarrar” (esfregar-se em pessoas sem vê-las) e, se houvesse química, trocariam uma roupa com a pessoa ainda dentro do túnel. Ao fim do quadro, a apresentadora Fernanda Lima dirigiu-se à câmera para esclarecer: sarrada é consensual, ambos querem, e quando um dos dois não quer, é assédio. O esclarecimento faz sentido, mas tende a quebrar o ritmo do programa.
As partes mais divertidas, certamente, ocorrem quando o Carnaval se concretiza, e Amor & Sexo se torna um palco para que os convidados (especialmente os jurados fixos) possam fazer suas performances. Um humorista como Eduardo Sterblich, por exemplo, está perfeitamente encaixado nesse programa carnavalizado em que a regra é a falta de regras.
O resultado de tudo isso, a julgar pelo primeiro episódio, foram péssimos índices de audiência no país inteiro. É difícil dar um diagnóstico sobre este dado a curto prazo: se ele significa um esgotamento do programa, ou uma inadequação à “mentalidade” da população brasileira. De todo modo, é de se esperar que a Globo marque posição e consiga manter Amor & Sexo como uma atração fixa de sua grade. Ainda que sua proposta não seja exatamente original, é, sem dúvida, um dos programas mais incisivos na TV aberta – e, por isso mesmo, extremamente necessário.