O universo da política está sempre à frente dos meios de comunicação de massa. A cada pleito que enfrentamos, novos atores aparecem para mostrar que tudo o que sabíamos sobre os processos comunicativos pode ser ultrapassado em um piscar de olhos. E veículos como a televisão, que prestam um serviço de comunicação bem específico por atingir uma imensa quantidade de pessoas ao mesmo tempo, também sofrem com a dificuldade de correr para alcançar o que ainda está sendo inventado.
Sem dúvida, o personagem de destaque dessas eleições é o coach Pablo Marçal. Não por suas propostas em si (que praticamente inexistem), nem pelo que ele pode acrescentar à cidade de São Paulo, caso seja eleito, mas sim pelo seu caráter disruptivo (termo que ele mesmo gosta) e sua capacidade de fagocitar a atenção do público – não pelos conteúdos que divulga, mas pela forma.
A política, no entanto, é (ou deveria ser) o cenário do embate das ideias para que a melhor sobreviva. E é para isso que ela é levada a público em tempos de eleições, na perspectiva de que nós, os eleitores, possamos ver os candidatos e julgar quem merece nos representar. No entanto, não é esse o jogo do debate intelectual que o candidato coach domina, o que ele deixa bastante claro, inclusive em entrevistas.
Convidado desta semana do Roda Viva, o mais tradicional programa de debates da TV brasileira, Pablo Marçal deixou bastante explícito que ele estava ali para usar a máquina televisiva para seus interesses, não para se encaixar naquilo que a atração propunha: uma roda em que um entrevistado é recrutado para estar ao centro e dialogar com jornalistas.
Uma máquina de cortes
O que se viu, em cerca de uma hora e meia de Marçal ao vivo na TV Cultura, foi a sua capacidade de subverter os princípios do programa de uma maneira nunca vista antes. Já é sabido que seu engajamento se fundamenta nos “cortes” (os pequenos vídeos curtos facilmente propagáveis em que uma pessoa fala algo impactante, “lacrador”) que cria e que espalham como vírus nas redes. E o que se pode ver ali é que o candidato chegou preparadíssimo.
A cada pergunta feita pelos valentes jornalistas que foram enfrentar essa fera midiática, como se entrassem em uma cova de leões, Pablo Marçal respondia de forma ágil. Quando perguntado sobre questões constrangedoras que não lhe interessavam, ele respondia outra coisa. Ao ser cobrado que voltasse ao foco, utilizava subterfúgios falsamente lógicos, já que, no fundo, são respostas infantis, como “você tem direito de perguntar o que quiser e eu de responder o que quiser”.
Pelo que se viu no Roda Viva, Marçal consegue subverter até os mais consolidados formatos que estabelecemos. Ele conseguiu roubar o controle que, a priori, era dado ao jornalismo e aos jornalistas.
Ficou claro ali que entrevistá-lo não é tarefa fácil. Qualquer tropeço era aproveitado de forma muito veloz. Quando uma jornalista, por exemplo, falou “cidadões”, ele já iniciou a resposta lacrando e dizendo que a palavra certa era “cidadãos” – mais uma vez, gerando um corte, e também esclarecendo que, na sua presença, a cordialidade escapa como princípio da política.
Mas talvez o mais escandaloso para quem assistia foi ver que Pablo Marçal sequestrou a câmera da TV Cultura, alterando o próprio mecanismo básico do programa. Ao invés de responder aos jornalistas, ele respondia para o espectador, quebrando a quarta parede. Algo que, até onde consta, nunca foi feito por um convidado do Roda Viva.
Em artigo publicado na Folha de São Paulo, o professor Wilson Gomes, da UFBA, coloca as entrevistas diretas como um dos três formatos usados pela televisão em épocas de eleição (os outros dois são os debates televisivos e o horário de propaganda eleitoral gratuita). Na entrevista direta, o jornalismo tem o controle, ao propor as perguntas, estipular o tom da conversa e definir o tempo das respostas.
Pelo que se viu no Roda Viva, Marçal consegue subverter até os mais consolidados formatos que estabelecemos. Ele conseguiu roubar o controle que, a priori, era dado ao jornalismo e aos jornalistas. Os profissionais presentes, como se viu, tiveram muita dificuldade de saber o que fazer com essa nova figura midiática, que escapa de qualquer princípio mútuo de decoro.
Claro está que ainda não se sabe muito o que fazer com tudo isso. Nós, jornalistas, que somos treinados para seguirmos os formatos que supostamente asseguram a busca da verdade, estamos tateando o que fazer com personagens para quem até o jornalismo (não importando de qual tipo seja, nem quais as fontes de financiamento) é visto como o inimigo, um exemplar do tal “sistema”. Resta saber como enfrentaremos isso.
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