É provável que a maioria de nós pense no super showrunner Ryan Murphy lembrando de sucessos como American Horror Story e Glee. Mas, antes de soltar estes hits, Murphy chocou a plateia com uma série que bombou na proposta de polemizar com a crescente corrida pelos procedimentos estéticos e transformações corporais, entendidas como se fossem qualquer coisa. Falamos aqui de Nip/Tuck, que durou seis temporadas veiculadas entre 2003 e 2010.
A trama central percorre a relação entre dois cirurgiões plásticos, o sensato e talentoso Sean McNamara (Dylan Walsh) e o fútil e vaidoso Christian Walsh (Julian McMahon). Juntos, eles tocam uma clínica famosa em Miami procurada por centenas de pessoas sedentas por ficarem mais bonitas (algo obviamente discutível) e matarem um pouco do ódio que carregam em si (há um bordão repetido pelos médicos a cada consulta: “diga o que você não gosta em você”).
Para além das cenas envolvendo plásticas (certamente, a cereja do bolo de Nip/Tuck, exibidas de forma explícitas, mas belamente estetizadas, o que chamou muita atenção na época), a série de Ryan Murphy repercutiu muito pelas tramas adjacentes que veiculava. A maior parte delas era tão exagerada que beirava o inverossímil.
Mas, sem dúvida, havia em Nip/Tuck um desejo por fazer um comentário exagerado não apenas sobre a frivolidade das cirurgias e procedimentos estéticos, mas das relações humanas. A revista Vulture, por exemplo, definiu a série como a “mais influente de Ryan Murphy”, e que trazia já a marca registrada do produtor: a de criar programas de televisão que abordam questões sociais relevantes a partir de um tratamento glamouroso.
Nip/Tuck já apresentava outra característica que se repetiria nos outros trabalhos de Ryan Murphy, que é uma forte presença de diversidade, tanto no elenco, quanto nos assuntos abordados. Isso é evidentemente maravilhoso: a produção trouxe muitos personagens gays, transexuais, pessoas com deficiências, e enfrentou temas como abandono parental, ascensão da extrema direita, os perigos do fanatismo religioso, a vida das pessoas HIV+, dentre muitos outros.
Mas os tempos mudam, e a forma com que a realidade é abordada, também. Por isso, é incrível como certas cenas e abordagens do roteiro ficaram incrivelmente datadas, e possivelmente causam vergonha hoje a Ryan Murphy. Se você duvida, preste atenção nestes momentos presentes nas temporadas de Nip/Tuck e que podem ser conferidas a qualquer momento (a série está disponível na Amazon Prime).
A vida com HIV
Por vezes, Nip/Tuck errou não em trazer alguns temas, mas na abordagem sutil que foi feita deles – algo que é bem fácil de passar batido. Um exemplo é o que ocorre no episódio Granville Trapp, da terceira temporada, que mostra um homem que procura a clínica para resolver o que ele chama de “rosto da AIDS”: uma lipoatrofia que faz com que seu rosto perca a gordura nas bochechas e fique levemente encovado.
Nip/Tuck já trazia a marca registrada de Ryan Murphy: a de criar programas de televisão que abordam questões sociais relevantes a partir de um tratamento glamouroso.
O sujeito diz que o rosto funciona como “uma letra escarlate que grita ‘homem gay doente’, fique longe”. Ao procurar a clínica para arrumar o rosto, ele afirma que quer começar a namorar novamente – o que gera imediatamente uma reação de espanto no médico Sean McNamara. O sentido negativo imputado à decisão do homem, de voltar a se relacionar, fica restrito à sutileza, sem jamais ser retificado no resto do episódio.
Pessoas com deficiências
Outra situação ocorre no episódio Tommy Bolton, da mesma terceira temporada. Nela, um rapaz com Síndrome de Down, acompanhado pelos pais, vai à clínica com um pedido: quer parecer com sua família. Com má vontade, o médico visitante Quentin Costa (vivido pelo brasileiro Bruno Campos) tenta desconversá-lo passando um valor alto para o total de oito cirurgias reparadoras.
Isso leva a uma discussão entre Costa e o médico Christian Troy. Costa não quer dar desconto nas cirurgias por essa não ser a “fundação Make-A-Wish” (instituição destinada a realizar sonhos de crianças com doenças graves), e emenda dizendo que os procedimentos só representariam uma maior decepção ao paciente. Ao que Troy responde: “a vida dele é uma decepção”.
Há outro acontecimento importante na trama que vai transcorrer nas temporadas seguintes, quando Sean McNamara e sua esposa Julia (Joely Richardson) engravidam de um terceiro filho. Durante a gestação, Julia descobre que há algum problema com a criança, o que é colocado sob um longo suspense, em que o espectador é provocado a ficar tenso para saber qual problema o bebê terá.
Por fim, descobre-se que o menino tem ectrodactilia, uma deficiência em que os dedos das mãos ou dos pés ficam unidos, dando ao membro uma aparência de “garra de lagosta”. Há uma longa abordagem, em vários episódios, sobre o impacto que isso traz na família, em especial sobre o pai, Sean, que só pensa em formas de resolver o “problema”, inclusive considerando o aborto.
Há também cenas comoventes e inspiradas – como quando o casal contrata uma pessoa com nanismo (ninguém menos que Peter Dinklage) para ser babá da criança, e ele aponta que antes de considerarem operar o filho, eles deveriam segurar a mão dele. Entretanto, todo o desenrolar da história, sobretudo no que envolve o pai, é bastante nociva em relação à realidade das pessoas com deficiência.
A abordagem de pessoas transexuais
Sem dúvida, a pior trama apresentada em Nip/Tuck envolve uma que apresenta uma pessoa transexual. É uma série de equívocos tão maléficos que o episódio foi abordado no documentário Disclosure, que reflete justamente sobre a representação de pessoas trans em Hollywood ao longo do tempo. A história envolve uma mulher chamada Ava Moore, interpretada por Famke Janssen. Ela trabalha como coach e tem realizado ações que prejudicam em vários sentidos a família de Sean McNamara e Christian Troy – incluindo (pasme) ter um caso com o filho menor de idade de Sean.
O problema se “resolve” de forma chocante. Christian seduz Ava e faz sexo com ela, numa cena que, claramente, retrata um estupro. A seguir, ele retorna para o consultório e fala para Sean, com cara de nojo: “Ava é um homem”. Segundo se mostra no roteiro, ele descobre isso porque sua vagina reconstruída seria diferente das “mulheres de verdade”.
É toda uma abordagem absurda e que difunde e estimula, além do preconceito, a violência contra mulheres trans. Durante uma cena de Disclosure em que comenta o episódio, a atriz trans Laverne Cox (de Orange is the New Black) parece estar à beira das lágrimas enquanto comenta a cena: “Quero chorar falando sobre essa narrativa… é isso que acontece conosco quando assistimos. Eu me pergunto se alguém, quando estava construindo essas histórias, pensou nas pessoas trans assistindo”. É um desserviço que continua sendo difundido até hoje.
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