Muitos espectadores têm achado a edição 2017 do Big Brother Brasil um tanto modorrenta. De fato, com quinze anos ininterruptos de transmissão, este é um programa que tem uma difícil pecha de ser sobre nada e, por isso mesmo, precisa de novidades e reinvenções a cada edição para permanecer interessante. Além disso, a longevidade do programa traz ainda mais um desafio: ao longo dos anos, tanto os espectadores quanto os participantes adquiriram um domínio das regras do que significa, afinal, “ser um bom jogador”.
Uma vez que o mote de BBB é justamente aquilo que surge de mais humano e pulsante entre os participantes, ele depende sempre de ter escalado um bom elenco – o que nem sempre acontece. Assim, o domínio de uma subentendida “cartilha” do Big Brother fez os espectadores – mediante sua reação em redes sociais e segundo os próprios números de audiência do programa – considerassem o elenco fraco. A razão, aparentemente, seria justamente o excesso de autocontrole da própria imagem: os brothers pareciam todos muito passivos, em cima do muro, demasiadamente preocupados em não criar uma má impressão no público. Participantes como Daniel, que evita qualquer tipo de posição, e Rômulo, que se posicionava (literalmente) como um diplomata apaziguador de conflitos, foram considerados com baixíssima capacidade de entretenimento. A graça, parecia, estava nos mais extravagantes e fora da curva, como Elis.
Mas então algo interessante passou a ocorrer nessa edição. Um conflito bastante inusitado – e algo inédito na história do BBB – passou a se prenunciar: entre os participantes e o próprio programa. Em um dos episódios, considerado histórico pelo jornalista Maurício Stycer, o embate chegou a um ápice. Na noite em que o diplomata Rômulo foi eliminado, o participante travou um inesperado bate-boca com o apresentador Tiago Leifert. Em suma, Rômulo questionou algumas das colocações feitas pelo jornalista, protagonizando com ele uma intrigante disputa acerca dos sentidos gerados pelo programa.
Os quinze anos de BBB foram suficientes para que as regras e as consequências do programa se popularizassem, e fizeram com que os concorrentes hoje tenham a clara noção de que colocam muito a perder quando ganham este grau de visibilidade.
Parece-me que toda a história decorrida faz relembrar as próprias origens da ideia que inspira a franquia Big Brother, que pertence à produtora holandesa Endemol. Em 15 anos de transmissão brasileira, é bem possível que muitos espectadores já não saibam que o termo “grande irmão” remete ao romance 1984, do inglês George Orwell, que descrevia um futuro distópico no qual um regime autoritário é regulado por um governo centralizador, que tudo vê e faz com que todos se sintam vigiados. Orwell cria a figura do “grande irmão”, o olho nunca visto mas que todos sabem que existe, como uma referência à estrutura arquitetônica do panóptico, que seria ideal para as prisões. Trata-se de um sistema em que todos passam a ser vigiados, mas jamais sabem que estão sendo olhados; assim, naturalmente, todos os presentes passam a controlar-se pelo medo das consequências desta vigilância.
Ou seja, a referência feita à lógica do programa Big Brother é muito clara. Todos ali sabem que estão sendo vistos, e a graça da atração se torna a de fazer uma “caça” pelos momentos em que eles se esquecem disto. Não por acaso, Tiago Leifert – que tem um estilo muito diferente ao de Pedro Bial, sendo paradoxalmente mais amigável e mais combativo que o colega – responsabiliza o chamado “grande irmão” por boa parte das decisões do programa. Trata-se, claramente, de uma figura muito mais metafórica sobre o poder concretizado pela máquina televisiva do que uma referência a alguém específico, como o diretor Boninho (que é nomeado poucas vezes no BBB 17).
Há, pelo que me parece, um interessantíssimo material a ser analisado nesta edição. Talvez, pela primeira vez, os brothers reivindicam um certo domínio da narrativa do programa, ao invés de aceitarem ser apenas peças de uma narrativa construída por outrem. É comum, aliás, que os participantes questionem a edição que está sendo passada aos espectadores, mesmo que não estejam vendo o programa (tal suspeita é fortalecida pela coleção feita pelos espectadores de episódios não veiculados pela edição da TV, e flagrados apenas no pay per view).
Isto talvez se dê por várias razões. Por um lado, os quinze anos de BBB, conforme já explícito, foram suficientes para que as regras e as consequências do programa se popularizassem, e fizeram com que os concorrentes hoje tenham a clara noção de que colocam muito a perder quando ganham este grau de visibilidade. Ou seja, eles sabem que não apenas realizam um sonho, mas, em alguma medida, vendem a alma ao diabo – e por isso, devem barganhá-la por um bom preço.
Por outro lado, o questionamento ao poder das empresas de comunicação também se popularizou. Defender que os veículos de massa são instituições pouco confiáveis é, de certa maneira, a norma, o senso comum – vide, por exemplo, que os próprios programas televisivos, como Tá no Ar, hoje podem incluir a figura do personagem que concretiza a postura de “o povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”. É meio como se a crítica tivesse se tornado tão ordinária que o próprio criticado consegue utilizá-la para seus próprios fins.
Em resumo, o conflito entre brothers e o “grande irmão” é irresistível justamente porque consegue trazer voz a algo que diz respeito não apenas ao famigerado programa da Globo, mas a um sentimento muito mais profundo que é compartilhado pela população de modo geral. Quase como rebeldes inseridos na máquina para subvertê-la por meio das vias internas, os atuais habitantes da “casa mais vigiada do Brasil” talvez consigam, por fim, trazer relevância a uma atração que representa, certamente, aquilo que há de mais descartável e supérfluo na televisão.