Há uma nova leva de um formato audiovisual bastante intrigante, que eu chamaria de documentários institucionais: filmes que se propõe em mostrar a “realidade” de sujeitos que são, eles mesmos, os próprios produtores da obra. A Netflix, por exemplo, estreou uma série documental sobre Zezé di Camargo produzida pela filha dele e seu marido. E a Globo está indo na onda de lançar filmes sobre os bastidores de episódios que repercutiram muito, como o cancelamento nacional de Karol Conká e, mais recentemente, o lançamento às pressas do Domingão com Huck.
Como o título já indica, o documentário Domingão com Huck: a história da história se propõe a mostrar o que realmente teria acontecido no imbróglio que levou Luciano Huck sair, meio às pressas, do Caldeirão do Huck para assumir o lugar de Fausto Silva no Domingão do Faustão (cuja “história atrás da história” ainda segue nebulosa). Como tudo que costuma envolver Luciano Huck, o objetivo claro dessa produção é tornar o apresentador mais humano, mais “gente como a gente”, papel que ele tenta a todo custo colar à sua imagem.
O objetivo do documentário da Globoplay é trazer ao espectador a visão “real” sobre como de fato ocorreu, pela perspectiva da produção do programa, esta que era uma verdadeira missão impossível: colocar Luciano Huck para substituir Faustão, um sujeito que, para o bem ou para o mal, permaneceu no horário por mais de trinta anos. E domingo à tarde, vale lembrar, é um espaço da grade televisiva que tradicionalmente é dedicado ao entretenimento coletivo, uma vez que as pessoas não costumam estar trabalhando neste período.
Quem está ali, portanto, tem a chance de se tornar muito próximo de todos os membros de uma família – e foi isso que aconteceu com Faustão que, entre altos e baixos, tornou-se uma pessoa muito querida dos brasileiros. Luciano Huck, meio que sem muito escolha, foi forçado a tomar o espaço de um gigante do entretenimento.
A verdade é que não deve ser fácil ser Luciano Huck. Nascido em berço de ouro, criado nos Jardins, Huck teve uma carreira televisiva que mudou de rota no meio do caminho. Ele surgiu o Programa H, na Band, e se tornou um símbolo da vida noturna de uma classe média alienada, trazendo como principais quadros a exibição de dançarinas sensuais que seduziam homens da plateia.
Com o tempo, Huck foi mudando seu perfil – embora sua origem em uma atração hoje politicamente incorreta como o Programa H até hoje cobre sua conta. Assim, ele foi encaminhando sua carreira para uma missão de “representar o Brasil” e achar maneiras de combater a desigualdade social – palavras suas, que inclusive são repetidas no documentário. Mas fazer isso enquanto se é um milionário com claras pretensões políticas não é bolinho: é praticamente impossível que se desconfie de qual seria o interesse tão grande de Huck nas classes populares.
Mas o apresentador é brasileiro e não desiste nunca. Ele sabe que, entre seu eleitorado – ops, público -, pode uma hora colar a imagem de homem do povo. Como um bom político, Huck é um homem de família. Quando entrevistado sobre quem ele é, o novo comandante do dominical prontamente responde: “o marido da Angélica”. Seus três filhos também aparecem eventualmente na tela, mas repetem que não desejam ver o pai candidato.
A ênfase na recusa à política
Mas Luciano Huck é brasileiro e não desiste nunca. Ele sabe que, entre seu eleitorado – ops, público -, pode uma hora colar a imagem de homem do povo.
É curioso que, no documentário Domingão com Huck: a história da história, a ideia da recusa da política se repita o tempo todo. Luciano aparece dizendo que, mesmo com todos os percalços enfrentados nos anos anteriores até 2021 (envolvendo, em parte, o sentir-se emparedado em ter que escolher entre sair candidato à presidência em 2018 ou permanecer na televisão), ele está tranquilo de ter tomado a decisão certa.
Assumir o Domingão do Faustão, portanto, seria como uma prova final sobre para qual lado Huck quer se virar. É claro que não há nada mais comum do que políticos que dizem não ser candidatos até se candidatarem – e para quem abdicou de um posto político, é muito estranho que o apresentador apareça em várias cenas do documentário rodeado de governadores, e até em eventos como o Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça.
Frases suas que aparecem em cena, como “se a gente não souber quem é cada um dos brasileiros, a gente não vai conseguir escalar a solução do problema” e “acho muito estranho o Brasil estar só nas discussões econômicas e fora das discussões sobre o futuro da educação e sustentabilidade”, mostram que obviamente a faceta política não foi enterrada.
E qual o problema disso? Para responder a questão, trago aqui o que, para mim, é a parte mais interessante do documentário da Globoplay: a forma com que a narrativa tenta instituir um discurso pelo qual o próprio justifica suas ações. Muitas das críticas ao Luciano Huck apresentador têm a ver com o fato de que seus programas têm como centro os quadros em que pessoas mais pobres são “ajudadas”.
Ele sabe disso e, no documentário, tem a chance de trazer os seus argumentos sobre essa crítica. Nos momentos finais, o apresentador cria uma resposta sobre as cobranças quanto à postura assistencialista do seu programa: “o assistencialismo, para mim, é prestar atenção no outro, não achar que o legal é só o galã da novela. Não, vamos falar das pessoas, realizar seus sonhos. Então, se eu puder ajudar, por que não?”.
A julgar por essa lógica, Luciano Huck não tem clara a resposta a essa pergunta. E a resposta é: porque certamente ele tira mais vantagens dessa caridade do que os milhares de pobres cujos sonhos ele realizou. Está aí, para provar, o nosso potencial futuro presidente da República.
VOCÊ CHEGOU ATÉ AQUI, QUE TAL CONSIDERAR SER NOSSO APOIADOR?
Jornalismo de qualidade tem preço, mas não pode ter limitações. Diferente de outros veículos, nosso conteúdo está disponível para leitura gratuita e sem restrições. Fazemos isso porque acreditamos que a informação deva ser livre.
Para continuar a existir, Escotilha precisa do seu incentivo através de nossa campanha de financiamento via assinatura recorrente. Você pode contribuir a partir de R$ 8,00 mensais. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.
Se preferir, faça uma contribuição pontual através de nosso PIX: pix@escotilha.com.br. Você pode fazer uma contribuição de qualquer valor – uma forma rápida e simples de demonstrar seu apoio ao nosso trabalho. Impulsione o trabalho de quem impulsiona a cultura. Muito obrigado.