Poucas franquias televisivas recentes fizeram mais sucesso que RuPaul’s Drag Race, o icônico reality show fundado por RuPaul Charles em 2009, com transmissão original na Logo TV. O programa gerou várias temporadas além de uma série de spin-offs desdobrados em diferentes países, com a missão (às vezes ingrata) de mesclar o universo drag com características da cultura local, sem soar um grande clichê.
Por tudo isso, a chegada da corrida de drag queens ao Brasil estava cercada de uma grande expectativa. O primeiro Drag Race Brasil tinha o desafio de ser bem sucedido – o que não significava exclusivamente números de audiência, mas sim em engajamento orgânico e na formação de uma comunidade ativa capaz de fazer o nome da atração seguir circulando.
Na quarta-feira, com o encerramento da primeira temporada do primeiro Drag Race Brasil, pode-se dizer que as expectativas foram supridas a contento. Se, por um lado, tivemos uma primeira temporada que pode até ser considerada modesta, em termos de produção, o que pudemos ver, ao longo dos meses em que o programa esteve no ar, foi uma entrega de uma diversão competente e convidativa, capaz de engajar fãs para torcer e até assistir à atração juntos em estabelecimentos, em clima de Copa do Mundo. Um tipo de resultado, é bom dizer, que pode valer mais que dinheiro.
What’s up, lindas?
Aviso: esse texto NÃO contém spoiler sobre a vencedora do programa.
A graça de reality shows desse tipo (que fica entre o competitivo e de convivência) está exatamente na sua imponderabilidade: o resultado de um temporada está sempre em aberto, a sabor do ventos, mesmo que se faça tudo certo. Contudo, talvez possamos arriscar pontos que podem garantir que o programa seja bem sucedido.
No caso da franquia drag race, eu destacaria alguns elementos: é preciso ter uma boa apresentadora, capaz de funcionar como uma persona agradável e maternal; a capacidade de trazer uma estrutura recorrente e reconhecível entre as temporadas, mas, ao mesmo tempo, fornecer algo novo ao espectador; e, por último, mas não menos importante, o elenco precisa ser bom e cheio de carisma.
O primeiro contato com o programa, produzido pela Paramount e pela MTV, foi com a hostess, Grag Queen, drag gaúcha de Canela e que ficou mais conhecida ao vencer o programa Queen of the Universe, série da franquia de Ru gravada em Londres e focada em drag queens cantoras. Embora talvez não fosse tão famosa entre o público mais geral (em comparação a outros nomes que pareciam também possíveis escolhas, como Gloria Groove), Grag certamente não deixou a desejar.
Não basta tudo funcionar bem sem que haja a cereja o bolo: um grupo de participantes competentes tanto no que apresentam, quanto na capacidade de cativar um séquito de fãs com vontade de advogar a seu favor.
Foi capaz de entregar praticamente tudo o que se espera de uma apresentadora que segue o legado de RuPaul: versatilidade, carisma e timing de comédia. Em comparação a outras apresentadoras de programas semelhantes (é infinitamente melhor que Valentina, à frente do Drag Race México). Grag mostrou ser ágil e engraçada na interação com as queens, e conseguiu emplacar bordões (como “what’s up lindas?” e chamar as participantes de filhas) sem soar forçada.
O outro elemento é o formato recorrente. Quem assiste aos realities Drag Race com frequência já sabe o que vai encontrar, quase como se estivesse participando de um ritual. As competições se repetem: o stand up comedy, o desafio de design, o Snatch Game, o makeover de pessoas fora da arte drag, e assim por diante. Por isso, cada temporada tem a tarefa de repetir e reinventar cada uma das provas.
Penso que Drag Race Brasil conseguiu seguir a fórmula com competência, trazendo alguma brasilidade a cada desafio sem que soasse over (um risco bastante grande aqui). O elenco pode representar uma diversidade da identidade brasileira em diversos aspectos e regiões, e foram poucas que acabaram apostando nos clichês mais batidos.
Um grupo fora de série
Por fim, comento o ponto que considero o mais importante de todos. Não basta tudo funcionar bem sem que haja a cereja o bolo: um grupo de participantes competentes tanto no que apresentam, quanto na capacidade de cativar um séquito de fãs com vontade de advogar a seu favor.
Por isso, parece-me realmente impressionante que, entre doze competidoras, houvesse pelo menos umas seis muito completas em todos esses quesitos. Arrisco a dizer que tudo conspirou tanto a favor que conseguiu culminar em um top five matador: as cariocas Betina Polaroid, Miranda Lebrão, Organzza, Shannon Skarlett e a baiana Hellena Maldita.
As finalistas conseguiram entregar – e mostrar, tendo ressonância na edição – uma identidade marcante e reconhecível, em que elementos de suas histórias puderam encontrar conexão com o público. Betina, por exemplo, representou a trajetória ascendente do azarão (com o adicional de ser uma das participantes mais velhas de toda a franquia), enquanto Hellena pode levar uma mensagem sobre pessoas soropositivas. Shannon, por outro lado, brilhou com uma personagem efusiva e divertida que remetia muitas vezes ao humor de Jorge Lafond, em seu icônico personagem Vera Verão.
Cada uma delas é magnética a ponto de chamar atenção dos espectadores sobre o que elas poderiam trazer em seguida. Suas eventuais derrapadas – como o look todo preto de Organzza, ou uma maquiagem de Hellena que parecia o personagem Beto Carneiro, o vampiro brasileiro de Chico Anysio – trouxeram camadas a mais para que Drag Race Brasil seguisse interessante até o fim.
A conversação fora da tela
Por fim, é essencial que um dos indícios mais fortes da qualidade de Drag Race Brasil (bem mais que Caravana das Drags, em comparação) é a repercussão e a mobilização geradas fora das redes. Foi possível enxergar pessoas vendo episódios nos metrôs e, em algumas cidades, como São Paulo e Curitiba, foram organizadas watch parties oficiais e não autorizadas – ou seja, festas em que o público se reunia para assistir aos episódios, quase como se estivesse vendo uma partida de futebol.
Segundo fontes ligadas à produção do show, o programa esteve sempre entre os primeiros lugares de audiência na plataforma da Paramount, assim como na falação gerada nas redes sociais. Embora isso ainda não tenha sido divulgado oficialmente, a segunda temporada já está confirmada.
A julgar pelo que vimos, tem tudo para seguir arrasando no coração dos fãs. Basta que Drag Race Brasil siga fazendo uma curadoria impecável entre as drags mais interessantes do país.
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