Chegamos, por fim, na reta final de um programa complexo, confuso e irresistível como foi o Big Brother Brasil 20. As expectativas em torno da edição 20 eram enormes: depois de uma temporada entendida como a mais fraca, havia um suspense no ar para saber se o programa seria capaz de se reinventar e dar a volta por cima. O resultado, como assistimos, é uma edição que foi considerada por muitos críticos como a melhor de todas.
Reality shows de convivência encontram sua graça justamente na imponderabilidade: nem a produção nem a audiência sabem dizer, ao certo, onde está a fórmula de sucesso de um programa. Há sempre a possibilidade de que uma edição funcione, quando parecia fadada ao fracasso, ou o contrário. A edição 19, exibida em pleno país partido por um processo eleitoral, apostou em personagens marcados, que levantariam bandeiras sociais (o que, supostamente, geraria engajamento), mas o resultado foi muito aquém do esperado.
E aí chegamos à edição 20, com uma aposta pesada da Globo. Para começar, uma estratégia arriscada rompeu a premissa básica do programa: o elenco foi dividido entre anônimos (a “pipoca”) e celebridades ou webcelebs (o “camarote”). Optou-se, claramente, por selecionar um elenco que já trazia um séquito consolidado (a mais “famosa”, Boca Rosa, é uma digital influencer que já contava com milhões de seguidores em suas redes ao ingressar no programa). A justiça não seria a regra, nós pensamos – afinal, os anônimos não têm qualquer chance frente a pessoas reconhecidas nacionalmente e cheias de fãs.
A audiência se engajou ativamente ao programa, e foi capaz de associar, a cada um dos participantes, um valor social relevante. Eleja qual valor é a sua prioridade e eu direi qual brother você é.
E logo nas primeiras semanas, uma surpresa: Boca Rosa foi eliminada pelo público. Havia então uma primeira prova que o jogo não estava ganho pelas celebs, e que Big Brother Brasil parecia estar conseguindo construir uma narrativa própria, alheia às trajetórias pessoais de seus participantes. As estratégias, portanto, estavam dando certo. E na sequência das semanas, esta narrativa só cresceu.
Ao que me parece, a qualidade desta edição, celebrada tanto pela crítica quanto pelo público, deveu-se à capacidade de criar uma narrativa multifacetada, carregada de nuances, como um “palco” que se dividia de forma equânime entre vários atores competentes. A cada semana, o protagonista mudava: Boca Rosa e seu temperamento explosivo; Marcela e a denúncia do machismo dos “machos escrotos”; Felipe Prior e sua postura iconoclasta, simultaneamente engraçada e destrutiva; Gizelly e sua intempestividade; Pyong e sua persona manipuladora e sedutora; Manu Gavassi e sua performance meticulosamente calculada para as redes digitais; os justiceiros da “casa de vidro” (Daniel e Ivy), com seu poder de mudar os rumos do jogo ao trazer informações externas para dentro do programa.
Ou seja, o jogo nunca esteve ganho por nenhum dos jogadores. Chegamos à reta final e até o momento, não há certeza absoluta de quem levará o prêmio. E por que isso importa? Porque – e eis aqui, talvez, o verdadeiro “pulo do gato” desta edição 20 – a audiência se engajou ativamente ao programa, e foi capaz de associar, a cada um dos participantes, um valor social relevante. Espontaneidade, justiça social, potencialidade para o entretenimento, capacidade de mediação: eleja qual valor é a sua prioridade e eu direi qual brother você é.
No BBB 20, a polarização da vida cotidiana foi apropriada para uma polarização radical dos participantes do programa e de seus apoiadores. Em certo momento, se você defendeu a permanência de Prior, significava que você apoia o abuso contra mulheres e, em última instância, Bolsonaro. Se defendeu Manu Gavassi, você viveria em um mundo cor de rosa nas redes digitais, e sua principal preocupação seria escolher qual filtro de Instagram valoriza mais a sua imagem. Se você era team Marcela, significava que você defende um feminismo liberal em que o empoderamento feminino se esvai perante um macho jovenzinho. Se você apoiou Babu, você atua em prol das políticas que prezam a justiça social. Obviamente, a vida – como o BBB – é muito mais complexa que isso.
Por isso, é possível dizer que foi um BBB inclusivo, que proporcionou narrativas para todos. Uma das principais foi a trajetória de exclusão de Babu, o ator desempregado, provindo da favela do Vidigal, que esteve em oito paredões injustamente (é preciso prezar a justiça para mandar alguém ao paredão?) e só não desponta como o favorito absoluto porque há um importantíssimo personagem externo que determina (ou ao menos tem forte participação) os rumos do BBB: os fandoms, os grupos articulados de fãs que defendem seus ídolos e se mobilizam para mantê-los na casa.
Como bem pontuam os críticos, uma das grandes questões do BBB é que talvez os mecanismos de julgamento do programa não funcionem mais, uma vez que a “turma do sofá” (as pessoas que apenas assistem à TV, os zapeadores ou casuais, que certamente compõem a maior parte da audiência) teria menos poder de decisão que os fandoms, compostos por bem menos pessoas, mas que dedicam uma boa parte de seu tempo (e suas vidas) para votar na internet – disso decorre, por exemplo, um paredão recordista, com mais de um bilhão de votos.
Isso, claramente, aponta a um certo desequilíbrio numa equação em que um candidato nunca enfrenta outro, mas sim encara uma legião de fãs enfurecidos. Quem são essas pessoas? Do que elas vivem? Como conseguem ânimo para cultuar um participante de reality show? O futuro da televisão – ou ao menos do Big Brother Brasil – depende de uma compreensão cada vez mais apurada sobre as especificidades deste grupo.
Por bem ou por mal, a verdade é que sobrevivemos a essa edição de BBB, que se encerra renovado, comprovando que há ainda muita lenha para queimar nos próximos anos. Que venha 2021!