A aposentadoria de uma figura televisiva é sempre uma ocasião única (e estranha) para os espectadores. Ver uma personalidade de TV retirar-se do seu posto é uma oportunidade de constatarmos o quanto os sujeitos que ocupam as posições olimpianas das mídias têm tanto poder: porque eles se misturam com as nossas vidas e, mais que isso, com a nossa memória de eventos históricos.
Este domingo de fim de Copa do Mundo foi marcado a despedida de Galvão Bueno das narrações esportivas. Pessoalmente, duvido que esse retiro se sustente por muito tempo – como o jornalista Maurício Stycer comentou em sua coluna da UOL, Galvão anunciava a aposentadoria desde 2010, pelo menos. Mas o que provavelmente se sinaliza nesse momento é o fim do contrato tradicional mantido pela Globo com o narrador desde 1981, totalizando 41 anos de casa. Vale lembrar que esta é uma tendência cada vez mais forte na maior emissora do país: ela está encerrando contratos com estrelas e passando a trabalhar por projetos.
Saindo ou não de cena por definitivo, o fato é que Galvão Bueno se tornou parte daquilo que entendemos por TV brasileira – no mau e no bom sentido. Por isso, a despedida cheia de pompa e choro neste dia 18 de dezembro deve servir ao menos de desculpa para pensar no seu legado.
Galvão Bueno, a voz do esporte do Brasil

Ao final da transmissão da Copa do Mundo que sagrou a Argentina como vencedora, Galvão Bueno recebeu várias homenagens da emissora que foi sua contratante por quatro décadas. Ao lado dos colegas, os comentaristas Júnior e Ana Thais Matos, Galvão assistiu, com semblante claramente emocionado, a vídeos com espectadores espalhados pelo Brasil imitando seus jargões, a reverências feitas pelos colegas de emissora e viu vídeos especiais em que ele mesmo dava depoimentos.
Galvão, é bom dizer, se tornou quase um sinônimo da TV Globo, bem como seu porta-voz.
Em um deles, ele se descrevia como “um vendedor de emoções” que usou a voz como instrumento para fazer este serviço. Não se pode negar que este seja um adeus “por cima” deste narrador que, por meio de sua onipresença, angariou amor e ódio quase na mesma medida.
É sua voz que esteve presente em momentos alojados para sempre na memória cultural dos brasileiros, como no grito de “Ayrton Senna do Brasil” que anunciou as vitórias do corredor, ou no abraço meio atrapalhado em Pelé e Arnaldo Cezar Coelho ao narrar o tetracampeonato do Brasil, em 1994. Não por acaso, essa instalação na memória perdurou para outros espaços, com seus jargões indo parar no TikTok, por exemplo.
Sua carreira se iniciou em 1974, quando ele foi contratado pela TV Gazeta como radialista. Foi seu ingresso no mundo da comunicação, aos 24 anos. Antes disso, Carlos Eduardo dos Santos Galvão Bueno trabalhava em uma fábrica de plásticos.
Em 1977, Galvão foi contratado pela Record, mas só trabalhou nesta emissora por poucas semanas, pois migrou para a TV Bandeirantes. Em 1978, atuou como comentarista na transmissão da Copa do Mundo, na Argentina. Nesta emissora, ele ainda estrearia na narração ao vivo quando a Band comprou os direitos de transmissão da Fórmula 1. O sucesso foi tanto que em 1981 ele receberia uma proposta da Globo.
Os reveses da voz da TV Globo

Obviamente, nem tudo foram rosas nessa história. Afinal, não há como ficar tão grandioso dentro da maior emissora do Brasil e ficar impune de toda a desconfiança que ela mesma é alvo, e por razões justificadas.
Galvão, é bom dizer, se tornou quase como um sinônimo da TV Globo, bem como seu porta-voz. O jargão que consolidou para abrir suas transmissões interpela os espectadores como “amigos da Rede Globo”, tensionando uma relação forçada de camaradagem entre público e TV. Há uma oposição clara aos discursos de “Globo lixo” que também pululam desde sempre, com maior ênfase após o surgimento de outro fenômeno midiático: Jair Bolsonaro.
Mas, como sempre acontece, o processo de recepção das mensagens da mídia é vivo e dinâmico. Por isso, mesmo depois de décadas de solidificação de um discurso da Globo colocando Galvão Bueno como a voz do sentimento dos brasileiros, seu nome foi “sequestrado” para simbolizar a oposição à emissora.
O ano era 2010, durante a Copa do Mundo na África do Sul. O nome do famoso narrador alcançou os trending topics do Twitter ao lado de uma hashtag que dizia: Cala a boca, Galvão. Começaram a aparecer rachaduras em torno de um nome que se entendia quase como unânime. Galvão, pela primeira vez, era decifrado coletivamente como cheio de si, falastrão, dono da verdade.
O protesto se elevou inclusive com coros ofensivos ao narrador em estádios onde ocorriam os jogos, sendo captados pela transmissão da Globo. É este, inclusive, o momento em que Galvão Bueno ameaçou sua aposentadoria (mais tarde, ele tentaria reapropriar a frase dando título a um livro chamado Fala, Galvão!).
Independente do que ocorreu ali, o “Cala a boca, Galvão” entrou para a história como um momento de reação coletiva e pulverizada aos estímulos vindos da mídia, provando que não há como controlar as percepções do público.
A aposentadoria de um mito

Mesmo depois de ser decifrado como o que havia de melhor e pior na TV brasileira (da mesma forma que ocorreu com outros grandes nomes da mídia, como Faustão, Gugu Liberato, Silvio Santos), Galvão Bueno parece ter dado a volta por cima. Depois de 41 anos de Globo, o narrador se despede (aparentemente) de uma forma que não poderia ser melhor para ele.
Retira-se de cena sem nenhum sucessor à sua altura no horizonte. Conhecido como milionário, bon vivant e amigo de famosos, Galvão deixa a cena após a participação na sua 13ª Copa do Mundo. Nesta, esteve do lado de Ana Thais Matos, a primeira comentarista mulher convidada pela Globo para estar ao lado do maior locutor do país. Galvão, no entanto, foi acusado de não validar as suas opiniões ou de dar pouco espaço para que ela pudesse brilhar.
Ainda que, no momento de sua despedida, ele tenha tentado fazer jus à conquista histórica de Ana Thais, talvez a aposentadoria de Galvão possa um dia também ser encarada como uma “troca de guarda” para que novas vozes, mais condizentes com o mundo atual, possam encontrar seu espaço.
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