A série documental Xuxa, o Documentário parece estar cumprindo um dos objetivos almejados: o de gerar muito buzz em cima da vida de uma apresentadora que se tornou um paradigma inatingível dentro da TV brasileira. É justo dizer que Xuxa criou uma figura midiática que parece ir além de uma explicação lógica: ainda jovem, virou um objeto de culto acima de qualquer suspeita para milhões de pessoas.
Mais de quarenta anos de carreira se passaram e Xuxa Meneghel continua localizada em um Olimpo que, não importa o que tenha sido dito dela (como a polêmica da participação no filme Amor, Estranho Amor; ou as “denúncias” sobre como o padrão loiro e europeu de sua beleza prejudicou milhares de crianças), ela segue idealizada. E, por isso, quando um novo produto surge sobre ela – como é o caso da série da Globoplay – a esperança é que ele traga algumas luzes da realidade para além do mito.
Infelizmente, não é o que acontece em Xuxa, o Documentário. Aqui vislumbramos mais uma homenagem da Globo a ela (o que não deixa de ser interessante, visto que ela passou mais de uma década sendo “esquecida” pela emissora) do que um produto jornalístico.
Planeta Xuxa
Com cinco episódios no total, a série da Globoplay já soltou quatro deles. Cada um se foca em algum aspecto importante da história da apresentadora, como o seu lançamento na TV, o romance (sobretudo o com Ayrton Senna), as perdas durante a vida, a construção de sua carreira com crianças e a expansão para além do país. No meio deles, em uma lógica de edição meio incompreensível, são colocados outros tópicos aleatórios, como um reencontro com o ator que, quando menino, fez uma cena sensual com Xuxa no filme Amor, Estranho Amor, de Walter Hugo Khouri, em 1982.
Xuxa, o Documentário tem a direção dos jornalistas Pedro Bial e Cassia Dian, e da diretora Mônica Almeida (os três, aliás, vinculados ao Conversa com Bial). A assinatura dos profissionais, portanto, trazia uma expectativa mais jornalística ao projeto, no sentido de obedecer de forma mais incisiva a princípios regentes do ofício, como a busca de uma isenção, o que só pode ocorrer por meio do esforço para ouvir os vários lados de uma história.
Mas não é o que acontece. A sensação, na verdade, é que esta é uma narrativa construída por fãs, ou por alguém que recebeu a orientação para fazer um documentário institucional, iluminando certas facetas da história e escurecendo as que não seriam interessantes para a emissora. Quando se adentra em tópicos que poderiam ser polêmicos (como quando Xuxa é confrontada com a crítica de que o “padrão loiro” da Xuxa e suas paquitas pode ter trazido sérios prejuízos às meninas brasileiras), isso é feito de forma algo protocolar, apenas para constar.
Da mesma forma, causa muito desconforto o episódio que desdobra o relacionamento com Ayrton Senna como um verdadeiro conto de fadas – o que é endossado por Viviane Senna, irmã do piloto, num claro esforço de menosprezar o relacionamento com Adriane Galisteu, com quem ele namorava quando morreu. Adriane, obviamente, não é ouvida em nenhum momento.
O “duelo” com Marlene Mattos
Por fim, a Globoplay estreou o mais esperado episódio, que envolve o reencontro de Xuxa com Marlene Mattos, que foi sua empresária durante 19 anos (e, como Marlene lembra, depois ficaram sem nunca mais se ver por mais 19, somando quase 40 anos de história).
Tudo o que cerca este momento parece extremamente constrangedor: Xuxa espera Marlene chegar em um teatro meio escuro e vazio. Quando ela entra, não há abraço ou qualquer tipo de cumprimento mais afetuoso. Xuxa já começa a metralhando com uma mágoa do passado: o fato de que, num dia em que houve um incêndio no palco do programa, Marlene teria dito que “odiava crianças” (segundo a apresentadora, aquela teria sido a gota d’água para deixar de trabalhar com a empresária).
Daria para dizer que todo o império bizarro (em grandiosidade) que foi constituído em torno de Xuxa se deveu ao fato de ela ter tido uma empresária bizarra por trás.
No resto da cena, que dura cerca de 20 minutos, o que vemos é apenas uma enxurrada de reclamações e lembranças de coisas que foram ditas e que Marlene afirma, na maior parte das vezes, nem se lembrar mais. Como Marlene está ali apenas para se defender, e não para contar o seu olhar sobre toda a história, tudo acaba soando meio covarde.
Que fique claro: não se trata de absolver Marlene, nem de não constatar que, pelas tantas declarações de Xuxa e de outras pessoas, ela era realmente abusiva. Contudo, Xuxa acaba se adequando a um papel passivo da vítima indefesa, o que não a ajuda em nada – nem a ela, nem a outras tantas mulheres abusadas. Ela, inclusive, chega dizer algo no estilo “meu problema foi te amar demais”.
Mas há aspectos interessantes que são levantados no encontro. As acusações de Xuxa se voltam ao estilo de gestão de Marlene Mattos, meio militar e invasivo, o que corroboraram para que Xuxa se tornasse um produto bem acabado – e que poderia ser vendido até para a exportação, como foi. Daria para dizer, talvez, que todo o império bizarro (em grandiosidade) que foi constituído em torno de Xuxa se deveu ao fato de ela ter tido uma empresária bizarra por trás.
O segundo aspecto é que a lavação de roupa suja sobre o passado das duas expõe claramente os meandros de uma televisão operada com certo amadorismo, pode-se dizer, em que relações de pessoalidade se misturam com o profissional. De certa forma, há até alguma conexão com os tantos escândalos de assédio e de abuso envolvendo a TV Globo que explodiram nos últimos anos – incluindo aqui o de Marcius Melhem.
Por fim, chama a atenção que algumas acusações de Xuxa contra Marlene Mattos se direcionam ao sensacionalismo que ela provocava – como no exemplo do programa forjado para que a apresentadora reencontrasse o pai, com quem estava brigava. Certamente, é um episódio horrível e, como Xuxa fala, Marlene dizia que “lágrima dava Ibope”.
Me parece importante pensar que essa era a regra da TV dos anos 80 e 90 e, arrisco dizer, é a regra até hoje em programas policiais e popularescos, embora não vejamos muitos diretores sendo acusados de fazer isso. E causa também algum desconforto em notar que todo o episódio do reencontro com Marlene Mattos foi engendrado com esse aspecto de “duelo” e “acerto de contas”- o que não deixa também de ser bastante sensacionalista.
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